- Partilhar artigo
- ...
Portugal tem um longo caminho a fazer para melhorar a sua posição na área dos resíduos, face às metas e congéneres europeus, sendo o lixo considerado um dos "calcanhares de Aquiles" do país em termos ambientais. O tema esteve no centro do debate "Gestão de Resíduos e Economia Circular - Estamos a tratar bem o nosso lixo?", integrado na conferência sobre o Ambiente promovido pela iniciativa Negócios Sustentabilidade 2030, que teve lugar no passado dia 19 de outubro, no Pestana Palace, em Lisboa.
Tendo em conta que anualmente cada cidadão produz mais de meia tonelada de resíduos, Andreia Barbosa, autora do livro "O lixo em Portugal", abriu o debate referindo que "o cidadão é o primeiro gestor do lixo doméstico pelas decisões que toma", seja na separação do mesmo, seja nas decisões de compra de produtos.
Andreia Barbosa salienta que o país está a dar os primeiros passos e a experimentar modelos como o PAYT (pay as you through), onde o cidadão paga mediante o lixo que produz e não mediante uma tarifa indexada à fatura da água. "Os modelos têm provado que quando existem estas modelações há uma consciência acrescida do impacto desse comportamento e há uma mudança de comportamento", referiu. Assim, "modelos como o PAYT são certamente caminhos para levar à decisão correta do cidadão, que é uma parte importante da equação", acrescentou.
Tendo em conta que mais de metade dos resíduos produzidos em Portugal vai para aterro, sendo a meta a alcançar de 10% em 2035, Andreia Barbosa considera que este caminho significa "mudar radicalmente a forma como fazemos as coisas". Nesta matéria, acha que "devíamos ser realmente ambiciosos" a aproveitar a "alavanca do tratamento dos biorresíduos que, se forem efetivamente desviados do indiferenciado e tratados de forma correta, traz um sem número de vantagens, incluindo não ter de aumentar a capacidade de incineração e valoriza a matéria orgânica".
Recorde-se que a recolha seletiva de biorresíduos em Portugal Continental vai ser obrigatória a partir de 1 de janeiro de 2024, o que vai exigir uma nova operação por parte de 278 municípios e operadores e novos comportamentos do lado dos cidadãos.
Vera Eiró, presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR), começou por salientar que Portugal teve "uma evolução notável nos últimos 30 anos na gestão de resíduos. Houve um trabalho muito grande em Portugal de reconversão e requalificação do tratamento de resíduos urbanos", acrescentando que o país está agora numa "fase diferente", de "afinação", uma vez que, a partir de 2026, a tarifa de gestão de resíduos deixará de estar indexada à fatura da água.
"Estamos numa situação em que o que formos implementar vai ser mais difícil e mais caro". Atualmente, na maioria dos municípios, o preço da gestão de resíduos está indexado ao volume da água que se gasta e apenas em 12 municípios se está já a implementar o sistema PAYT, referiu a gestora. "É uma ideia que parece simples em termos conceptuais, mas isto implica uma grande alteração em termos de logística, implica que eu consiga medir que resíduos estou efetivamente a produzir, implica que deixemos a lógica do contentor fora de casa. Portanto, do ponto de vista operacional e de implementação do sistema, é difícil e não está de acordo com os nossos hábitos de vida", referiu.
Apesar de esta alteração ser "um desafio muito grande", Vera Eiró, considera-a essencial. "As pessoas, para conseguirem valorizar mais o serviço que têm, precisam ter uma noção clara do que é que estão a beneficiar e isso só acontece se eu colocar o meu resíduo e souber quanto vou pagar por ele, e se souber que se no mês seguinte puser menos vou pagar menos e isso não acontece ainda".
Neste sentido, a ERSAR está a desenvolver um trabalho para implementar guias e apoios técnicos para que os municípios possam aceder a este regime, reconhecendo Vera Eiró que "é difícil de implementar" e que "estão atrasados". Também considera que não será possível implementar o sistema em todo o território nacional. Por isso, "temos que pensar noutros mecanismos de gestão de resíduos urbanos associados ao comportamento do consumidor", acrescentou.
Vera Eiró salientou a importância de cumprir as novas diretrizes em matéria de biorresíduos, a partir de 2024, uma vez que eles representam "40% dos resíduos domésticos" e porque "se conseguirmos fazer esta separação o mais rápido possível conseguimos garantir a reutilização para a agricultura ou para a produção de biometano, por exemplo". Com a vantagem acrescida de se conseguir "reduzir de forma substancial a percentagem de resíduo que vai para aterro", acrescentou.
Marta Brazão, presidente da Circular Economy Portugal, destacou que os cidadãos continuam a ter muitas dúvidas sobre reciclagem. Encarando os resíduos como recursos, defendeu que o trabalho deve começar na prevenção da geração de resíduos, ou seja, "o melhor resíduo é aquele que não existe, porque não temos de o gerir". Ainda assim, a responsável destacou que a maioria da sociedade ainda vive "na lógica da reciclagem", algo que considera "um erro".
No que respeita aos três RRR, aponta que o país se "focou sempre muito na reciclagem e não no reduzir e no reutilizar". No contacto com os cidadãos e empresas, verifica que existem muitas dúvidas sobre disponibilidade de lojas de reparação e centros de reutilização, de forma a promoverem o tempo de vida dos produtos. "As pessoas procuram soluções e não as encontram", sublinhou Marta Brazão.
Salientou também que as pessoas que estão mais preocupadas com as questões ambientais são as que têm as outras necessidades satisfeitas. "Eu não consigo ir falar de reciclagem a pessoas que ainda têm outros problemas por suprimir". Além disso, defendeu também que "há vários sistemas para várias pessoas", seja o sistema porta-a-porta, o Ecoponto ou outra via, "não havendo, por isso, um modelo que sirva a todos".
Nesta transição, a presidente da Circular Economy Portugal defendeu também que "é muito injusto pôr o ónus da responsabilidade nas pessoas, porque começa tudo nas empresas". Ou seja, "quando chega a nós, só temos a opção de tentar colocar no contentor correto". Até porque, como referiu, "quase 80% do impacto ambiental está na fase de produção".
Tendo em conta que a arquitetura legal da União Europeia é favorável ao direito à reparação, entre outros, mas na prática muitas realidades não se praticam, Paulo Lemos, ex-secretário de Estado do Ambiente, referiu que "é um processo". Salientou também que "um dos pecados originais da política de resíduos é a aposta na reciclagem", uma vez que na hierarquia da gestão de resíduos estará em quarto lugar, seguindo-se à prevenção, minimização e reuso. Nesse sentido, a União Europeia tem tentado apostar em legislação "de nova geração com objetivos que vão para além da reciclagem e que apostam mais na prevenção", esclareceu. Iniciando-se esta prática com a diretiva dos sacos de plástico, em 2015, quando houve um objetivo de redução.
Paulo Lemos reforçou também que as empresas estão cada vez mais abertas a estas questões, mas são as questões legais que aceleram as implementações. Coloca, por isso, o foco no ecodesign dos produtos como solução para melhorar a gestão de resíduos. "O foco está na durabilidade do produto, ou seja, promover a reparação, promover a remanufactura e o reuso".
Em matéria legislativa, destacou também a diretiva sobre embalagens, ainda em discussão, que tem objetivos "mais ambiciosos em termos de reciclagem, de produto reciclado e de reutilização". Salientou também a redução da produção de resíduos, com metas europeias per capita. "Tudo isto vai também ajudar", concordado que "o melhor resíduo é aquele que não é produzido".
Paulo Lemos reforçou que é necessário "apostar na prevenção de produção de resíduos" e acredita que só apostar em medidas de remediação, como é o caso da reciclagem, não será o caminho. "Só com legislação mais exigente e termos de metas de reutilização, de prolongamento do ciclo de vida dos produtos, de reutilização de modelos de negócio alternativos, é que vamos poder conseguir resolver o problema das lixeiras ou das incineradoras".