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Relatório do IPCC: “É preciso mudar o paradigma e parar de desflorestar”

Filipe Duarte Santos defende que os países têm de levar as conclusões preliminares do relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas “a sério e mostrar maior ambição nos seus objetivos de redução de gases com efeito de estufa”, senão caminhamos para um ponto de não retorno.

18 de Agosto de 2021 às 12:55
Filipe Duarte Santos compara o planeta a uma piscina e as emissões a uma torneira completamente aberta. Vítor Mota
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O presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) lembra que, para que se pudesse celebrar o Acordo de Paris, cada país pertencente à Convenção-Quadro da ONU para as Alterações Climáticas teve de apresentar a sua (Intended) Nationally Determined Contributions / Contribuição Determinada a Nível Nacional (INDC ou NDC), com os objetivos de redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE). "Mas, mesmo com as INDC aprovadas, a subida de temperatura andaria acima dos 3,5°, em 2050, ficando longe dos ambicionados 1,5° a 2°", declara Filipe Duarte Santos ao Negócios, salientando que, "por isso, ficou definido que os países teriam de rever estas contribuições de cinco em cinco anos, aumentando, de cada vez, a sua ambição de redução de gases com efeitos de estuda ou, no mínimo, mantendo-as, mas nunca podendo regredir".

São essas novas INDC que irão sair da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), que decorrerá em Glasgow de 31 de outubro a 12 de novembro, com 195 países.

Filipe Duarte Santos diz que ainda estão a ser avaliados os compromissos assumidos por cada país em 2015, mas "é muito difícil aferir na totalidade o cumprimento dos objetivos porque alguns países, como a China, os Estados Unidos ou a Índia, não os quantificaram, e outros, como a Austrália e o Canadá, recusam-se a ir tão longe como o pretendido", seguramente por pressão das suas fortes indústrias de combustíveis fósseis, nomeadamente de carvão.

"Há uma aceleração mais rápida do que se pensava"

As conclusões preliminares do sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) mostram que "há uma aceleração mais rápida do que se pensava", afirma o professor catedrático jubilado de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O relatório estima que o limiar do aquecimento global (de +1,5°) em comparação com a era pré-industrial deverá ser atingido em 2030, dez anos antes do que tinha sido projetado anteriormente. Se se mantiver o atual ritmo de emissões, a temperatura global poderá subir até 2,7 graus em 2100.

De acordo com os especialistas da ONU, os "humanos são indiscutivelmente responsáveis" pelas alterações climáticas e não há alternativa senão a redução dos GEE. "A mensagem para cada país, governo e empresa é simples: é preciso seguir a ciência e assumirmos, cada um, parte da responsabilidade para que as metas sejam atingidas", considerou Alok Sharma, presidente da COP26, reagindo ao relatório.

Também o secretário-geral da ONU disse que o relatório do IPCC é um "alerta vermelho" que deve fazer soar os alarmes sobre as energias fósseis que "destroem o planeta". António Guterres pede que nenhuma central de carvão seja construída depois de 2021 e declarou, em comunicado que "os países também devem acabar com novas explorações e produção de combustíveis fósseis, transferindo os recursos dos combustíveis [fósseis] para a energia renovável". "Se unirmos forças agora, podemos evitar a catástrofe climática. Mas, como o relatório de hoje [9 de agosto] indica, claramente não há tempo e não há lugar para desculpas", frisou Guterres.

"O que determina as emissões é a concentração de CO2 na atmosfera"

Quanto às medidas ‘obrigatórias’ da COP26, Filipe Duarte Santos recorda que "o que determina as alterações climáticas é a concentração de CO2 na atmosfera, que é cumulativa e demora centenas de anos a dissipar-se, pelo que a única maneira de resolver isto é quando as emissões começarem a descer, ou seja, quando tivermos emissões negativas".

Assim, o presidente do CNADS defende que "temos de mudar o paradigma energético e parar de desflorestar". "Os países têm de levar tudo isto a sério e mostrar maior ambição nos seus objetivos de redução de gases com efeito de estufa", senão caminhamos para um ponto de não retorno. Recorrendo a um exemplo simples, o professor explica: "Imaginemos que o planeta é uma piscina e que as emissões são uma torneira completamente aberta a deitar água que vai enchendo a piscina. Em 2020, com a pandemia, as emissões desceram 7% em relação a 2019, fechamos assim a torneira dos 100% para os 93% de débito, mas a piscina continua a encher."

Com o aumento do preço da tonelada de carbono, começa a ser viável apostar na captura e sequestro de CO2, como o Reino Unido parece apostado em fazer. Filipe Duarte Santos
Filipe Duarte Santos insiste, por isso, que os objetivos do Acordo de Paris, nomeadamente de redução das emissões poluentes em 50% até 2030 e de neutralidade carbónica em 2050, devem ser cumpridos. "Até agora reduzimos cerca de 26% as emissões, o que quer dizer que nos próximos dez anos teremos de reduzir outro tanto ou, com o aumento do preço da tonelada de carbono, começa a ser viável apostar na captura e sequestro de CO2, como o Reino Unido parece apostado em fazer".

Esta opção, que pode dar origem a uma nova indústria ou área de negócio, "consiste no uso de grandes instalações fabris que usam combustíveis fósseis e lançam para a atmosfera grandes quantidades de dióxido de carbono, mas que o governo [do Reino Unido] não quer inviabilizar, fazendo então a captura do CO2 da atmosfera, por meios químicos, depois liquefazê-lo e injetá-lo em minas abandonadas, que sirvam de depósito e deem garantia de que não haja fugas".


O que é preciso alcançar na COP26?

 

1 - Assegurar a neutralidade carbónica até meados do século e manter o objetivo de 1,5 graus ao alcance


Os países devem avançar com metas ambiciosas de redução de emissões para 2030 que se alinhem com a obtenção da neutralidade carbónica até meados do século. Para cumprirem estes objetivos mais amplos, os países terão de:

n Acelerar a eliminação progressiva do carvão;

n Reduzir a desflorestação;

n Acelerar a mudança para veículos elétricos;

n Encorajar o investimento em energias renováveis.

 

2 - Adaptar-se para proteger as comunidades e habitats naturais

O clima já está a mudar e continuará a mudar mesmo quando reduzirmos as emissões, com efeitos devastadores.

Na COP26 precisamos de trabalhar em conjunto para permitir e encorajar os países afetados pelas alterações climáticas a:

n Proteger e restaurar ecossistemas;

n Construir defesas, sistemas de alerta e infraestruturas resilientes e agricultura para evitar a perda de casas, meios de subsistência e mesmo de vidas.

 


3 - Mobilizar o financiamento

Para atingir os nossos dois primeiros objetivos, os países desenvolvidos têm de cumprir a sua promessa de mobilizar pelo menos 100 mil milhões de dólares em financiamento climático por ano. 

As instituições financeiras internacionais devem desempenhar o seu papel e precisamos de trabalhar no sentido de libertar os biliões de financiamento do setor privado e público necessários para assegurar a neutralidade carbónica global.

 

4 - Trabalhar em conjunto para atingir

Só podemos enfrentar os desafios da crise climática se trabalharmos em conjunto.

Na COP26, será necessário:

n Finalizar o ‘Regulamento’ de Paris (as regras detalhadas que tornam o  Acordo de Paris operacional);

n Acelerar a ação para enfrentar a crise climática através da colaboração entre governos, empresas e sociedade civil.



| Schroders: o relatório do IPCC muda alguma coisa?

"O último relatório do IPCC sublinha a dimensão do desafio que se avizinha e acrescenta ímpeto à ação política e à pressão social, mas não altera o destino para o qual nos dirigimos", afirma Andy Howard, responsável global de investimento sustentável, da consultora Schroders numa análise às conclusões preliminares do relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, publicada esta segunda-feira.

Andy Howard sublinha que "a análise não deixa dúvidas quanto à escala da ameaça que se avizinha. (…) sem medidas para reduzir as emissões nas próximas décadas, as temperaturas aumentarão até 4° em relação a essa linha de base histórica antes do final do século XX [1900]".

2,4Impacto
Um aumento da temperatura de 1,5º levará a 2,4 vezes mais secas frequentes e a um aumento de 1,5 vezes de precipitação extrema, aponta a consultora Schroders. 
"Embora a diferença entre 1,5° e 4° possa parecer pequena, as consequências humanas não o são. Um aumento de temperatura de 1,5° levará a 2,4 vezes mais secas frequentes e um aumento de 1,5 vezes de precipitação extrema. Com 4° esses riscos duplicam aproximadamente para 5,1 vezes e 2,8 vezes, respetivamente, com muitas partes do mundo a tornarem-se inabitáveis, a migração em massa será inevitável e os impactos económicos severos", frisa Andy Howard defendendo que "estes avisos podem fornecer o catalisador de que os governos ainda precisam para coordenar ações ambiciosas e abrangentes a fim de atingir a neutralidade carbónica até meados do século".

A análise da Schroders destaca que "para atingir esse objetivo será necessário reduzir as emissões globais para metade durante a próxima década, ou seja, 6-7% de reduções anuais", mas "nos últimos 50 anos, as emissões de carbono aumentaram em média 2% ao ano", lembra.

A par das medidas globais dos países, o consultor salienta que também "as empresas devem fazer mais" e conclui: "Dada a escala da mudança necessária, é discutível se a economia global irá proporcionar uma transição zero nas próximas três décadas. Mas o timing é a questão-chave, não o imperativo de uma transição."
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