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O que colocamos no prato também pode irremediavelmente fazer a sua função de proteção do ambiente. Como é produzido, o percurso que faz e o que se consome são pilares essenciais para reduzir emissões. A pandemia pode ter deixado alguns caminhos positivos. Mas só o tempo o dirá, admite Joana Portugal Pereira.
Há outro tema relevante no combate às emissões que é a agricultura...
Tenho, nos últimos anos, vindo a debruçar-me muito sobre a segurança alimentar e dietas. Fiz parte do relatório especial do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), especificamente no capítulo da segurança alimentar. Uma mudança muito interessante foi a de pensarmos as nossas cadeias de produção alimentar. Houve uma grande tendência para recorrer a comércio local, a produtores locais, consumirmos produtos sazonais. Ficámos muito mais dependentes de uma produção de proximidade. É claro que nós fazemos todos parte de uma bolha, mas muitos amigos meus começaram a fazer hortas nas varandas, e eu penso que isso é um processo sem retorno: o de pensarmos os nossos padrões alimentares e recorrermos a cadeias de abastecimento mais curtas, que são mais resilientes e menos vulneráveis a choques e que não necessitam de uma tão grande pegada ecológica de transporte e até das embalagens. Parece-me que é um caminho que não terá retorno. É um passo em frente e quero acreditar que se manterá no futuro.
E mudou-se a dieta alimentar? Olhando para a minha bolha, houve alterações, com as pessoas preocupadas em consumir alimentos mais saudáveis.
Na minha bolha houve uma correria a produtos orgânicos e a cestas diretas de agricultores. As pessoas passaram a ter medo de ir a grandes cadeias de supermercados. Mas, mais uma vez, é muito difícil falar sobre o que aconteceu quando ainda o estamos a viver. Temos de esperar para entender como os padrões de consumo se alteraram.
Tendemos a olhar para a indústria como a grande poluidora, mas há muito trabalho a fazer na agricultura?
Na avaliação do IPCC de 2019 vimos que um terço das emissões globais vem dos nossos pratos – agregando as emissões, desde a produção no campo, passando por toda a cadeia de distribuição, processamento, até chegar aos nossos pratos. E chegámos a outra conclusão que me parece bastante relevante. Sempre apontámos para a necessidade de promover uma agricultura mais intensiva, mais sustentável, promover sistemas de agrofloresta integrados, menor aplicação de fertilizantes ou de forma mais inteligente. E, quando avaliámos todas as emissões em conjunto, concluímos que [esse tipo de agricultura] equivaleria a uma redução de emissões de gases de efeito de estufa de 8 GtCO2eq (gigatoneladas de CO2 equivalente) anual, que seria o suficiente para nos manter na meta do 1,5 graus [limite para o aumento da temperatura]. Mas também chegámos à conclusão que se houvesse uma alteração dos nossos padrões alimentares, sempre pensando primeiramente em segurança alimentar e saúde pública, conseguiríamos equiparadamente ter uma redução de emissões de gases de efeito estufa equivalente a 8 gigatoneladas. Sempre apontámos muito o dedo ao agricultor, mas temos de repensar que a mudança passa por nós.
Fala-se muito do excesso de consumo de carnes vermelhas.
Nós não estamos a falar de uma redução total de consumo de carne bovina ou outros derivados. Estamos simplesmente a defender a adoção dos padrões de consumo da OMS. A maioria da população europeia consome em excesso produtos derivados de carne, laticínios, com consequências gravíssimas para a saúde pública. Estamos a pensar em nós e, como cobenefício, estamos, sem dúvida, a promover a proteção ambiental.
Como se consegue fazer chegar estes problemas ao agricultor? Em Portugal, nomeadamente, a propriedade agrícola é muito fragmentada e com muitos pequenos agricultores.
Mas não é só Portugal. O setor agropecuário é tradicionalmente um dos mais conservadores, normalmente até é uma atividade intergeracional, passa de pais para filhos e de filhos para netos. Eu acredito que seja a partir de campanhas de capacitação e de divulgação. Passa por mostrar ao agricultor que ele tem ganhos inequívocos em alterar o seu sistema agrícola.
Na Europa há a PAC, para o apoio ao agricultor. Tem de se adequar esses programas?
Sem dúvida. É essencial criar mecanismos para que seja o próprio agricultor a promover a sustentabilidade do seu ecossistema.
A população está a crescer. Precisamos de cada vez mais alimentos?
Não concordo. Precisamos de uma melhor alimentação e de sistemas de produção mais eficientes. Atualmente perdemos cerca de um terço de todos os alimentos produzidos, o que gera 8% a 10% das emissões de gases de efeito de estufa globais. Portanto, temos um terço de perdas e desperdício alimentar, o que seria suficiente para alimentar o planeta com os quase 8 mil milhões de habitantes. A outra questão é ter uma produção agrícola – eu não gosto de dizer intensiva que tem uma conotação negativa – mais sustentável, eficiente e inteligente. Isso passa claramente pela mudança dos nossos padrões alimentares, evitando o sobreconsumo, que se traduz em mortalidade precoce e em problemas de obesidade , cancerígenos, questões cardíacas, etc. São esses três pilares – a redução de perdas e desperdícios alimentares, recurso às melhores práticas de agricultura eficiente e inteligente e repensarmos os nossos padrões alimentares – que se traduzem inequivocamente em melhorias para a saúde pública.