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Eva Gaspar - Jornalista egaspar@negocios.pt 30 de Julho de 2015 às 21:59

Desassossego

"Pequeno Tratado das Grandes Virtudes" foi escrito por André Comte-Sponville, filósofo contemporâneo francês, que inclui entre estas o humor. "O humor ri de si, ou do outro como de si, e sempre se inclui, em todo o caso, no disparate que instaura ou desvenda".

Em contraste, "a ironia não é uma virtude, é uma arma, voltada quase sempre contra outrem. É o riso mau, sarcástico, destruidor (...) é o riso do ódio, é o riso do combate. Útil? Que arma não o é?". Ainda segundo Comte-Sponville, não é aquilo de que se ri que impõe limites ao humor como virtude: "Podemos gracejar sobre tudo: sobre o fracasso, sobre a guerra, sobre a morte, sobre o amor, sobre a doença, sobre a tortura...(...) Podemos rir de tudo mas não de qualquer maneira. Uma piada de judeu nunca será humorística na boca de um anti-semita." 

Há uma semana, li aqui uma crónica supostamente humorística, a provocar o riso que nos exclui do risível, na qual vi a arma da ironia apontada contra um outro povo inteiro. Murro no estômago. E agora?

Não é o primeiro texto que leio que lança um manto de estigma sobre outros povos. A ironia xenófoba começa a ser preocupantemente banal – nas caixas de comentário dos jornais e nas redes sociais de que não se pode prescindir quando, por razões profissionais ou não, se queira sentir o pulso do mundo em que se vive. O preconceito, a maledicência, a leviandade, os mais primários instintos de vingança, o estigma está tudo lá, aos gritos, muitas vezes em maiúsculas, numa amálgama ensurdecedora.


Nas palavras de Umberto Eco, a "internet deu voz a uma legião de imbecis". Eles sempre andaram por cá, mas hoje parecem dar o tom. Já o que envolve ponderar e, acima de tudo, desconfiar - desconfiar de nós, das nossas convicções, pô-las à prova, promover o contraditório, pôr ideias umas contra as outras, não pessoas e menos ainda povos, uns contra outros - recolhe menos "likes" e "shares".


Quem faz do humor, do riso, o seu ofício não deve afinar pelo tom que nos dita a "legião de imbecis", que quer sangue, que vibra de ódio, nem cometer o pecado mortal de se levar demasiado a sério, vergando-se à ironia, a esse "riso que se leva a sério, que zomba mas não de si", a "essa pequenez a cujos olhos tudo é pequeno", como diz Comte-Sponville.


Num post do Facebook, esse texto seria só mais um ruído que acabaria por se dissipar. Vindo de quem gosto, que escreve aqui, lado a lado, não posso nem quero virar a cara: acho grave, João.

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