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Secretas sem lei

Que país é este onde a facturação detalhada das chamadas telefónicas de um jornalista chegam aos serviços secretos para que alguns espiões defendam os seus lugares?

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Que país é este onde a facturação detalhada das chamadas telefónicas de um jornalista chegam aos serviços secretos para que alguns espiões defendam os seus lugares? Que país é este onde os espiões transitam livremente e sem restrições para o sector privado? Que país é este onde se encolhe os ombros com mais um inquérito e investigação e sem uma demissão ou sanção após sucessivos atentados aos princípios básicos da democracia e da liberdade?

O semanário Expresso revelou no sábado que os Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) acederam aos registos telefónicos do então jornalista do Público Nuno Simas - actualmente director adjunto da agência Lusa. Os dados, nos moldes que conhecemos nas facturas detalhadas, dizem respeito ao período que vai de 19 de Julho a 12 de Agosto de 2010.
Um espaço de tempo que coincide com o trabalho que o jornalista estava a fazer sobre alterações nas secretas portuguesas, publicado a 7de Agosto de 2010 no Público com o título "Mudanças de espiões e dirigentes causam mal-estar em serviço das "secretas"". Como se pode ler na notícia, foram previamente contactados os responsáveis pelos serviços secretos, nomeadamente o secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), Júlio Pereira, e o presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP, Marques Júnior.

A reacção a que assistimos de sábado até ontem foi o de anúncios de inquéritos e investigações. O primeiro-ministro vai receber hoje o secretário-geral do SIRP e ordenou já a abertura de um inquérito interno. O Ministério Público vai iniciar um processo de investigação. O tema poderá discutido no Parlamento no âmbito da comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Perguntava ontem Eduardo Dâmaso, director-adjunto do Correio da Manhã: alguém se demitiu? Claro que não.

Ironicamente, a notícia do Expresso é divulgada quase ao mesmo tempo que se sabe que o relatório resultante do anterior e recente inquérito às secretas, por eventuais fugas de informação para a Ongoing, não vai ser enviado por Pedro Passos Coelho para a Assembleia da República por violar a lei do Segredo de Estado.

Por muitos paralelismos que se queiram fazer com casos anteriores de divulgação de escutas, o acesso das secretas aos registos telefónicos, completamente à margem da lei e aparentemente para defender as suas posições na hierarquia do estado, é o mais grave processo de que há memória. Seria grave se tivesse acontecido com um cidadão com outra profissão, é gravíssimo por se passar com um jornalista.

Falar em causa própria levanta sempre o problema de não se conseguir ser suficientemente distanciado. Mas basta reflectirmos sobre o papel que a comunicação social tem em qualquer democracia para percebermos a ameaça que constitui ao exercício da cidadania o acesso ilegal aos registos telefónicos de um jornalista.

A informação é um bem público, é um direito dos cidadãos que vivem em democracias. Só com informação podem os cidadãos exercer os seus direitos, desde a simples liberdade de opinião ao mais complexo escrutínio dos poderes públicos. Não há democracia nem liberdade sem informação. E só há informação digna desse nome se os poderes públicos respeitarem a lei e se a lei for cumprida.

Não podemos nem devemos aceitar que há escutas e acesso a registos telefónicos sem qualquer respeito pela lei. As próprias operadoras de telemóveis têm responsabilidades acrescidas nesta matéria, garantindo a segurança das comunicações aos seus clientes no quadro da lei.

Os tempos recentes têm sido demasiado ricos em informações que nos fazem temer o pior sobre o funcionamento dos serviços secretos em Portugal. Ninguém parece controlá-los. As secretas portuguesas parecem viver para que alguns se sirvam delas para atingir objectivos pessoais e não para garantir a segurança do estado e dos cidadãos.

Há um momento em que é preciso dar um murro na mesa. Cabe ao Parlamento, ao Governo e à Justiça garantir que a lei da selva acabou.


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