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29 de Setembro de 2008 às 13:00

Era uma vez na América

"Engenharia alemã, inovação suíça, nada americano"*, diz o "slogan" publicitário do Smart, não na Venezuela ou em Cuba, mas na África do Sul. Se fosse "nada chinês", "nada russo" ou mesmo "nada português", os nossos preconceitos leriam de imediato que este automóvel é fabricado com qualidade. Mas quando a ausência de América é uma atributo de um automóvel é porque estamos a assistir a um processo de decadência.

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A América está um farrapo, como simbolicamente revela o episódio de Henry Paulson ajoelhado ante Nancy Pelosi na Casa Branca, suplicando a aprovação do plano contra a crise financeira. A imagem é cruel, revela vulnerabilidade, desespero e incapacidade do Estado (ele, republicano, é secretário de Estado do Tesouro) falar com o Estado (ela, democrata, é porta-voz da Câmara dos Representantes). Mas contém também a ironia de ver um ex-presidente do Goldman Sachs (o poder das empresas) humilhar-se aos pés de uma política (o poder do Estado). Paulson, falcão impiedoso, construtor de impérios financeiros, passou de imponente a impotente. Se pensam que esta imagem de decadência vos alegra, pensem outra vez.

É com o "slogan" do Smart que Thomas Friedman, autor do célebre "O Mundo é Plano", abre o seu novo livro "Hot, Flat and Crowded" (ainda sem tradução em português). A propósito do esgotamento dos recursos naturais na Terra, Friedman sustenta as razões da decadência americana e nela inclui a crise financeira, lá nascida e criada. A verdade é que hoje não soaria estranho ver um anúncio de uma, digamos, Caixa Geral de Depósitos a um fundo de investimento que salientasse a não exposição a activos tóxicos: "Fundo Prudência: activos europeus, gestão portuguesa, nada americano. Invista já."

Os fins-de-semana em Washington tornaram-se pré-aberturas das Bolsas à segunda-feira e, ao ajoelhamento de Paulson na sexta-feira, seguiu-se o anúncio, domingo, de que o acordo está próximo. Um acordo em que o Estado compra activos tóxicos, "limpando" os balanços dos bancos, que tem sido muito criticado: Soros critica-o por pedir plenos poderes (inclusive à prova de tribunais) para o homem que se ajoelhou - e a quem se lhe seguir no Tesouro; Stiglitz acrescenta que é um risco para os contribuintes colocar esses activos no Estado; Krugman defende que, se o problema é falta de liquidez, então o melhor é o Estado entrar no capital das instituições, como fez na Fannie Mae; Martin Wolf e Luigi Zingales concordam, a "nacionalização" dos activos é pior que a entrada do próprio Estado nas instituições com problemas.

Por que razão insiste então Paulson e Bernanke neste plano? O presidente do Fed já explicou porquê... em 1983, num livro sobre como o "crash" de 1929 conduziu à Grande Depressão que durou até 1933. Numa síntese notável no seu blogue, o colunista do Negócios Pedro Lains explica como, segundo Bernanke, a redução da concessão de crédito para reduzir os riscos da banca levou há 80 anos ao "mergulho" de toda a economia, reduzindo o crescimento do PIB durante vários anos.

Não há solução milagrosa, qualquer decisão será dolorosa e será lenta. Mas afinal, como diz um ditado do Texas que Friedman cita no seu novo livro, "se tudo o que sempre fizeres é tudo o que sempre fizeste, então tudo o que vais ter é tudo o que sempre tiveste". O que tivemos já foi suficientemente mau. Venha de lá o plano para começarmos a discutir o futuro: a regulação.

* No original: "German engineering, Swiss Inovation, American nothing"


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