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Jean Pisani-Ferry - Director do Bruegel 02 de Agosto de 2018 às 14:00

Pode o multilateralismo adaptar-se?

A solução não está nem em cultivar a nostalgia da ordem de ontem nem em colocar a esperança em formas brandas e ineficazes de cooperação internacional. A acção colectiva internacional requer regras, porque a flexibilidade e a boa vontade, por si só, não conseguem resolver problemas difíceis.

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Recuemos ao final dos anos 1990. Após um hiato de oito décadas, a economia global estava a ser reunificada. A abertura económica estava na ordem do dia. As finanças estavam a ser liberalizadas. A internet daria em breve um acesso igual à informação a todas as pessoas do planeta. Para gerir a crescente interdependência, foram desenvolvidas novas instituições internacionais. A Organização Mundial do Comércio viu a luz do dia. Um acordo vinculativo sobre o clima, o Protocolo de Kyoto, acabava de ser finalizado.

 

A mensagem era clara: a globalização não significava apenas liberalizar os fluxos de bens, serviços e capital, mas também estabelecer as regras e instituições necessárias para orientar os mercados, promover a cooperação e fornecer bens públicos globais.

 

Agora, avancemos para 2018. Apesar de uma década de conversações, as negociações comerciais globais lançadas em 2001 não chegaram a lado nenhum. A internet tornou-se fragmentada e pode fragmentar-se ainda mais. O regionalismo financeiro está em ascensão. O esforço global para combater as alterações climáticas baseia-se numa colecção de acordos não vinculativos, dos quais os Estados Unidos se retiraram.

 

Sim, a OMC ainda existe, mas é cada vez mais ineficaz. O presidente dos EUA, Donald Trump, que não esconde o seu desprezo pelas regras multilaterais, está a tentar bloquear o seu sistema de resolução de disputas. Os Estados Unidos fingem, contra todas as evidências, que as importações de BMWs são uma ameaça à segurança nacional. Ordena-se à China - fora de qualquer estrutura multilateral - que importe mais, exporte menos, corte subsídios, abstenha-se de comprar empresas de tecnologia dos EUA e respeite os direitos de propriedade intelectual. Os próprios princípios do multilateralismo, um pilar fundamental da governança global, parecem ter-se tornado uma relíquia de um passado distante.

 

O que aconteceu? Trump, obviamente. O 45º presidente dos EUA fez campanha pelo cargo como um touro numa loja de porcelana, prometendo destruir as bases da ordem internacional, construídas e mantidas por todos os seus antecessores desde Franklin Roosevelt. Desde que assumiu o cargo, foi fiel à sua palavra, retirando-se de um acordo internacional após o outro e impondo tarifas de importação a amigos e adversários.

 

Ainda assim, encaremos a questão: os problemas de hoje não começaram com Trump. Não foi Trump que, em 2009, matou a negociação de Copenhaga sobre um acordo climático. Não foi Trump o responsável pelo fracasso da Ronda de Doha. Não foi Trump que disse à Ásia para se separar da rede global de segurança financeira gerida pelo Fundo Monetário Internacional. Antes de Trump, os problemas eram tratados com outros modos. Mas estavam lá.

 

Não há falta de explicações. E uma importante é que muitos participantes do sistema internacional estão a ter dúvidas sobre a globalização. Uma percepção generalizada nos países avançados é que as rendas da inovação tecnológica estão a ser corroídas precipitadamente. O operário americano de ontem devia o seu padrão de vida a essas rendas. Mas, como o economista Richard Baldwin mostra de forma brilhante em "The Great Convergence", a tecnologia tornou-se mais acessível, os processos de produção foram segmentados e muitos das rendas perderam-se.

Uma segunda explicação é que a estratégia dos EUA em relação à Rússia e à China fracassou. Na década de 1990, os presidentes George H.W. Bush e Bill Clinton pensavam que a ordem internacional ajudaria a transformar a Rússia e a China em "democracias de mercado". Mas nem a Rússia nem a China convergiram politicamente. A China está a convergir no que respeita ao PIB e à sofisticação, mas o seu sistema económico continua a ser uma coisa à parte. Como Mark Wu, de Harvard, argumentou num artigo de 2016, embora as forças de mercado desempenhem um papel importante na sua economia, a coordenação estatal (e o controlo do Partido Comunista) continua a ser omnipresente. A China inventou as suas próprias regras económicas.

 

Em terceiro lugar, os EUA não têm a certeza de que um sistema baseado em regras ofereça a melhor estrutura para gerir a sua rivalidade com a China. É verdade que um sistema multilateral pode ajudar a potência dominante e a potência em ascensão a não caírem na chamada "armadilha de Tucídides" do confronto militar. Mas a crescente percepção nos EUA é de que o multilateralismo impõe mais restrições ao seu próprio comportamento do que ao da China.

 

Por fim, as regras globais parecem cada vez mais desactualizadas. Ainda que alguns dos seus princípios subjacentes – a começar pela simples ideia de que as questões são tratadas multilateralmente, em vez de bilateralmente - sejam mais fortes do que nunca, outros foram concebidos para um mundo que não existe mais. Práticas de negociação comercial estabelecidas fazem pouco sentido num mundo de cadeias globais de valor e serviços sofisticados. E categorizar os países pelo seu nível de desenvolvimento está a perder a utilidade, dado que alguns deles combinam empresas globais de primeira classe com um grande nível de atraso económico. Mas a inércia é considerável, até porque é preciso haver consenso para mudar as regras.

 

Assim sendo, o que deve ser feito? Uma opção é preservar o mais possível a ordem existente. Essa foi a abordagem adoptada depois de Trump ter retirado os EUA do acordo climático de Paris: os outros signatários continuam a seguir o acordo. As vantagens dessa abordagem são que ela contém os danos do comportamento peculiar de um país. Mas, na medida em que a atitude dos EUA é um sintoma, a abordagem conservacionista não resolve a doença.

 

Uma segunda opção é usar a crise como uma oportunidade de reforma. A UE, a China e alguns outros países - incluindo, espera-se, os EUA em algum momento - deveriam tomar a iniciativa, resgatando aqueles aspectos do antigo multilateralismo que continuam a ser úteis, mas fundindo-os em novos acordos mais justos, mais flexíveis e mais apropriados para o mundo de hoje.

 

Esta estratégia teria a vantagem de identificar e absorver as lições oferecidas pelo esgotamento dos acordos tradicionais e o surgimento de novos. Mas haverá liderança e vontade política suficientes para ir além de compromissos vazios que só servem para manter as aparências? O risco negativo é que uma reforma fracassada poderia levar a um completo desmantelamento do sistema global.

 

A solução não está nem em cultivar a nostalgia da ordem de ontem nem em colocar a esperança em formas brandas e ineficazes de cooperação internacional. A acção colectiva internacional requer regras, porque a flexibilidade e a boa vontade, por si só, não conseguem resolver problemas difíceis. O caminho a seguir é determinar, caso a caso, os requisitos mínimos de uma acção colectiva eficaz e forjar um acordo sobre reformas que atendam a essas condições. Para aqueles que acreditam que esse caminho existe, é hora de o procurarem.

 

Jean Pisani-Ferry, professor na Hertie School of Governance em Berlim e na Sciences Po em Paris, é membro do think tank Bruegel.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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