Opinião
Medidas extraordinárias para tempos ordinários
Como as políticas não convencionais foram tão eficazes, agora são consideradas respostas apropriadas e necessárias para qualquer problema, enquanto as salvaguardas constitucionais são cada vez mais descartadas como pequenas preocupações burocráticas.
Já passaram dez anos desde que a crise financeira se tornou internacional. Até Julho de 2007, a crise do subprime parecia ser estritamente um problema para os Estados Unidos. Mas depois o Landesbank Sachsen e o IKB Deutsche Industriebank, dois bancos alemães regionais detidos pelo Estado, tiveram que ser resgatados e, de repente, tornou-se claro para os decisores políticos como o sistema financeiro global se havia tornado interconectado.
O legado de 2007 ainda está connosco. O seu efeito mais devastador e destrutivo foi promover medidas monetárias não convencionais. Infelizmente, quando os responsáveis por estas políticas procuraram "grandes bazucas" há dez anos, prepararam o cenário para o regresso de uma personagem antiga: um homem forte disposto a premir o gatilho.
No auge da crise financeira, os políticos estavam certos em concluir que não podiam confiar no mesmo do costume. Os bancos centrais precisavam de fornecer liquidez em grande escala, e os governos precisavam de complementar esses esforços de política monetária com uma expansão orçamental. Por conseguinte, a China e os EUA, em particular, lançaram programas de estímulo em grande escala em 2008 e 2009, respectivamente.
Algumas das medidas extraordinárias implementadas em resposta à crise financeira provaram estar mal concebidas e foram abandonadas ou revistas. Nos Estados Unidos, o Troubled Asset Relief Program (TARP), que o ex-presidente George W. Bush assinou em Outubro de 2008, começou como um programa através do qual o Departamento do Tesouro adquiriu activos problemáticos, em grande parte hipotecários, directamente de instituições financeiras. Mas acabou por ser mais complicado do que se pensava e, em poucas semanas, o governo simplesmente recapitalizava os bancos americanos.
Outras más decisões não foram tão facilmente revertidas. Com a esperança de evitar uma corrida aos bancos, o governo irlandês ofereceu uma garantia para todos os depósitos bancários. Com essa decisão unilateral, a Irlanda desestabilizou o resto da Europa. De repente, outros governos tiveram que temer que os depositantes dos seus próprios bancos fugissem em massa para os bancos irlandeses que tinham os depósitos garantidos (não importa que o custo da garantia fosse demasiado elevado para o governo irlandês).
Ainda assim, em geral, a resposta à crise financeira foi bem-sucedida, e aqueles que a lideraram tiveram motivos para se congratularem por terem impedido uma repetição da Grande Depressão. Mas, como as políticas não convencionais foram tão eficazes, agora são consideradas respostas apropriadas e necessárias para qualquer problema, enquanto as salvaguardas constitucionais são cada vez mais descartadas como pequenas preocupações burocráticas.
Já em 2008, o antigo presidente da Reserva Federal, Paul Volcker, advertiu que a Fed estava no "limite dos seus poderes legais e implícitos". Claro, alguns podem perguntar porque é que um decisor não deve ignorar esse limite em nome do bem-estar do país. Mas invocar a salus populi suprema lex - a máxima que diz que as leis devem reflectir o interesse público - é uma forma antiga de justificar a autocracia. Na verdade, quem deve dizer o que é do melhor interesse do público, ou determinar a lei suprema da terra? John Adams, o segundo presidente da América, notou a ambiguidade perigosa deste conceito: "O bem público, a salus populi", escreveu, "é o fim professo de todo o governo, o mais despótico, assim como o mais livre".
A visão pós-crise sustenta que um líder poderoso pode e deve consertar as coisas sozinho (os homens fortes raramente são mulheres). Esta abordagem foi evidente na resposta do governo russo ao colapso dos preços do alumínio em 2009, quando as perdas de emprego e a falta de pagamento de salários deram origem a protestos de grande escala numa fábrica em Pikalevo, 250 quilómetros a sudeste de São Petersburgo.
Quando o primeiro-ministro Vladimir Putin visitou Pikalevo, humilhou o proprietário da fábrica, o oligarca Oleg Deripaska, chamando-o de "barata". Putin não anunciou novas políticas para ajudar os trabalhadores russos; no entanto, o seu desempenho em Pikalevo foi saudado como uma afirmação ousada do poder do Estado diante do excesso capitalista.
Os homens fortes tendem a apresentar-se como tendo a capacidade exclusiva de enfrentar um problema específico. Para o presidente filipino Rodrigo Duterte, isso significa uma "guerra contra as drogas" que levou a milhares de execuções extrajudiciais. Putin e o presidente turco Recep Tayyip Erdogan justificam as suas políticas no contexto da luta contra o terrorismo. E o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, definiu o seu comportamento autocrático como uma resposta necessária a uma crise financeira interna. Ao focarem-se numa determinada "crise", esses líderes criam uma mentalidade em que todos os outros problemas se tornam crises que exigem uma acção imediata, eficaz e sem restrições.
Esta mentalidade pós-crise está de acordo com a doutrina do "decisismo" do teórico político alemão Carl Schmitt. Schmitt, que se juntou ao Partido nazi em 1933, defendeu que a tomada de decisão soberana é a característica central do processo político. Quando os líderes tomam decisões políticas, estão a reafirmar o controlo sobre o próprio conceito de soberania, que tem sido gradualmente corroído e transformado através das várias fases da globalização.
De acordo com Schmitt, a forma como os líderes chegam às suas decisões é secundário ao facto de ser tomada uma decisão. Um soberano "precisa" de agir com força para proteger determinados interesses ameaçados. Muitas vezes, isso implica gestos simbólicos. Em 1930, por exemplo, o Smoot-Hawley Tariff Act da América teve como alvos relógios suíços, produtos de seda japonesa e outras importações icónicas de certos países.
O proteccionismo hoje não é diferente. Consideremos a ameaça do presidente dos EUA, Donald Trump, de impor tarifas à BMW e à Mercedes-Benz: duas marcas de grande visibilidade que se associam imediatamente à Alemanha.
Em resposta às ameaças de Trump, a Europa também aproveitou a política do simbolismo. Se Trump continuar neste caminho, a União Europeia pode retaliar através do whisky bourbon, tipicamente americano e que é produzido em larga escala no Kentucky, o estado de origem do líder da maioria do Senado dos EUA, Mitch McConnell.
Infelizmente, esta abordagem criou um ambiente político em que as normas estabelecidas foram corroídas, sem que outras novas tomassem o seu lugar. O jornalista britânico Peter Pomerantsev, de origem soviético, disse-o da forma mais acertada no título do seu brilhante livro sobre a vida pós-soviética: Nothing Is True and Everything Is Possible [Nada é verdade e tudo é possível]. Agora que a crise foi normalizada como uma condição permanente, somos todos pós-soviéticos.
Harold James é professor de História e Relações Internacionais na Universidade de Princeton e membro sénior no Center for International Governance Innovation.
Copyright: Project Syndicate, 2017.
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Tradução: Rita Faria