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20 de Setembro de 2016 às 20:00

Porquê o PIB?

A utilidade política do PIB, e a narrativa de que mais é melhor para todos, vai ser difícil de ultrapassar – mesmo que se prove que está errada. Até lá, vai ser sempre produtos acima de pessoas.

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O produto interno bruto é a métrica mais poderosa da história. O Departamento norte-americano do Comércio apelida-o de "uma das grandes invenções do século XX". Mas a sua utilidade e persistência são reflexo das realidades políticas, não das considerações económicas.

 

Muitos de nós entendemos o PIB como uma medida da produção económica de um país, expressa como um único valor monetário. Mas é mais do que isso. O PIB, e a rapidez com que está a crescer, é o indicador universal de desenvolvimento, bem-estar e força geopolítica. Um crescimento do PIB positivo é o objectivo de cada Governo.

 

Mas o PIB tem deficiências bem documentadas. Por exemplo, o PIB no curto prazo cresce em resultado de actividades produtivas que poluem ou degradam o ambiente, mas não de trabalhos domésticos, cuidar de crianças e outras actividades valiosas que pouco contam para o PIB (se é que contam de todo). 

 

Fundamentalmente, o PIB é um conceito materialista: o único imperativo é uma produção maior; quantos mais bens e serviços prestados, melhor. Se faz com que as pessoas fiquem melhor, é uma questão totalmente diferente.

 

A insatisfação com a miopia do PIB levou, nos últimos anos, muitos políticos a explorarem indicadores agregados alternativos, mais voltados para as pessoas. Mas ultrapassar o PIB está provado que é difícil, dada a sua história. De facto, as métricas que são anteriores ao PIB eram, na verdade, orientadas para as pessoas e entender porque é que isto mudou pode trazer alguma clareza sobre o domínio contínuo do PIB.

 

Dado que parece que o PIB é hoje indispensável, pode ser uma surpresa que, até à década de 1930, a única medição estatística da economia que os governos nacionais usavam eram as estimativas de impostos. Tudo mudou a 29 de Outubro de 1929 – a terça-feira negra.

 

Com a chegada da Grande Depressão, os governos tomaram consciência que simplesmente não tinham informações sobre o que estava a acontecer às pessoas. Em 1931, quando o Congresso norte-americano realizou audiências sobre o estado da economia, os testemunhos que recebeu das empresas e dos líderes empresariais eram inúteis.

 

O Congresso reconheceu a necessidade de um retrato estatístico agregado da economia, mas não sabia como produzi-lo. Por isso, voltou-se para Simon Kuznets, emigrante soviético que era economista e que posteriormente foi laureado com um Nobel, a quem foi pedido que definisse e calculasse o que então foi chamado de "rendimento nacional".

 

O rendimento nacional não era uma ideia totalmente nova – investigadores em países diferentes tinham feito várias estimativas independentes – mas era a primeira vez que os políticos viam utilidade em usá-la. Como sugere o termo, esta métrica coloca ênfase nos rendimentos: o dinheiro disponível para os cidadãos. As descobertas de Kuznets foram chocantes: os americanos dispunham apenas de metade do que tinham ganho antes da crise. Para a administração do presidente Franklin Delano Roosevelt subir os rendimentos nacionais e assegurar que as pessoas ganhavam mais tornou-se numa das principais prioridades.

 

Mas quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial o foco mudou. A quantidade de dinheiro que as pessoas levavam para casa já não era uma questão urgente em comparação com as necessidades de produção de material para o esforço de guerra. Consequentemente, os políticos deliberadamente mudaram os conceitos: de rendimento nacional para produto nacional bruto (PNB), que mostrava apenas o valor total em dólares dos bens produzidos. Rendimento nacional e PNB eram em termos numéricos idênticos – por definição, o rendimento geral gerado é igual ao valor dos bens produzidos. A diferença fundamental é que o PNB não tem em conta como é que o rendimento é distribuído.

 

Kuznets argumentou contra tornar esta mudança fundamental permanente e exortou os governos a voltarem a focar-se nos rendimentos e na sua distribuição. Em tempo de guerra pode ser razoável concentrarem-se na produção dos bens necessários à vitória. Mas em tempo de paz, como salientou Kuznets, a produção de bens é apenas um meio para um objectivo superior: levar para casa o rendimento que é gerado e que está disponível para as pessoas. 

 

Kuznets foi ignorado. Pouco tempo depois da guerra, o governo norte-americano enfrentou um novo conjunto de desafios – reintegrar os militares que regressaram, responder à crescente ameaça da União Soviética e reconstruir a Europa que estava destruída – que tinham prioridade sobre os rendimentos individuais.

 

Entretanto, os políticos viram como a produção no período de guerra levou a um elevado crescimento do PNB e decidiram manter essa métrica a crescer a qualquer custo. Desde o final da Segunda Guerra Mundial que o crescimento do PNB (ligeiramente modificado na década de 1990 para se tornar PIB) tem sido visto como a solução para quase todos os problemas.

 

Este tipo de crescimento tornou-se um objectivo universal para aqueles que estão no poder porque este permanente aumento da produção evita a política. Como destacou John Kenneth Galbraith no seu livro The Affluent Society(A Sociedade Abastada), de 1958, "… a desigualdade deixou de preocupar a mente dos homens". O pensamento foi: uma tarte maior significaria que todos iriam ter uma fatia maior.

 

Esta história explica porque é que o PIB continua a ser a medida dominante em qualquer economia nacional e representa um desafio para aqueles que acreditam que existe uma alternativa viável. Qualquer indicador alternativo e qualquer estratégia de medição que não seja um crescimento na produção, exigiria que os políticos abordassem questões difíceis sobre o bem público – e assim alienar um ou outro círculo eleitoral.

 

Em que tipo de sociedade queremos viver? Os salários e rendimentos devem ser distribuídos de forma mais justa, em especial à luz das mudanças climáticas, um problema que vai afectar todos e para o qual uma pequena minoria contribui de forma desproporcional?

 

A utilidade política do PIB, e a narrativa de que mais é melhor para todos, vai ser difícil de ultrapassar – mesmo que se prove que está errada. Até lá, vai ser sempre produtos acima de pessoas.

 

 

Philipp Lepenies é professor convidado de Ciência Política na Universidade Livre de Berlim.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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