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15 de Outubro de 2015 às 20:00

Para acabar com a divisão digital transatlântica

A 8 de Setembro, depois de quatro anos de negociações meticulosas, os representantes dos Estados Unidos e da União Europeia assinaram um acordo transatlântico para reforçar a protecção dos dados.

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O chamado Acordo Geraldispõe salvaguardas em relação à transferência de dados com o objectivo de reforçar a lei e aborda preocupações europeias antigas sobre o direito à privacidade. Em particular, estabelece o direito dos cidadãos europeus de aceder aos seus dados e solicitar a correcção de erros. Também fixa uns limites claros sobre o tempo durante o qual se pode dispor dos dados e o que se pode fazer com eles.

 

O acordo – que deve ser ratificado pelo Parlamento Europeu antes de entrar em vigor – deve ser causa de celebração; mas os Estados Unidos proporcionaram imediatamente razão para duvidar do seu compromisso. A 9 de Setembro, no chamado caso Microsoft, apenas um dia depois de o acordo ter sido alcançado, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos argumentou no tribunal federal que se devia conceder às suas autoridades acesso directo aos dados de que disponham as empresas privadas no estrangeiro, incluindo na Europa. Independentemente da resolução que dite o tribunal, essa iniciativa é uma perigosa violação da confiança. De facto, é uma demonstração pública da disposição dos responsáveis americanos de esquivar as vias existentes para a cooperação entre a Europa e os Estados Unidos.

 

Acções semelhantes penalizam a lenta renovação da confiança transatlântica desde que as revelações de Edward Snowden sobre o alcance da vigilância americana dos governos europeus e dos cidadãos também. Para que o governo norte-americano ganhe a confiança e a cooperação da União Europeia, terá de aceitar que a segurança nacional e o carácter privado dos dados não são mutuamente exclusivos. Uma contínua recusa de proceder de acordo com os canais legais acordados vai selar o destino do Acordo Geral antes da sua ratificação.     

 

Dois terços dos cidadãos da União Europeia estão preocupados com o tratamento que se dá aos seus dados. Nove em cada dez querem que a sua informação seja protegida, independentemente de onde o servidor que as armazena esteja localizado. Enquanto o governo dos Estados Unidos continuar a procurar obter acesso ilícito aos dados europeus, em vez de aplicar plenamente os seus compromissos, será difícil que o Parlamento Europeu dê "via verde" ao Acordo Geral. E se se adoptar uma atitude para com as regras, os tratados e as normas vigentes que dê a entender que carecem de valor, os direitos dos cidadãos da União Europeia tornar-se-iam uma concha vazia.

 

As consequências da recusa em reconhecer os direitos dos cidadãos europeus poderiam ser dramáticas, penalizando a segurança nacional, o comércio bilateral, a parceria estratégica transatlântica e a própria natureza da Internet. Podem erguer-se fronteiras digitais e obstáculos ao fluxo dos dados para satisfazer os pedidos de respeito da intimidade numa altura em que o mundo precisa de dados a circular livremente. De outra forma, o terrorismo é mais difícil de combater e a revolução digital corre o risco de se reverter.

 

Felizmente, não faltam soluções que satisfaçam a necessidade de segurança nacional e as exigências de respeito da intimidade. O que faz das tentativas por parte do Departamento de Justiça dos Estados Unidos de ignorar os acordos vigentes tão notórias é que os estados-membros da União Europeia estão dispostos a cooperar rapidamente com os Estados Unidos na luta contra o crime quando os pedidos são feitos adequadamente. As tradições constitucionais dos dois lados do Atlântico podem ser diferentes, mas não são certamente irreconciliáveis como demonstrado pelo Acordo Geral.

 

Um equilíbrio adequado deve ser atingido. A protecção de dados não deve ser um obstáculo à aplicação legítima das leis. Nem se deve utilizar a segurança nacional como uma desculpa geral para que as autoridades criem obstáculos às liberdades pessoais. Encontrar os mecanismos que garantam tanto os direitos das pessoas como o interesse público é crucial para criar a confiança da qual a economia digital depende.

 

Além de penalizarem os esforços para conter o terrorismo, as normas que determinam claramente os papéis dos governos e os direitos dos cidadãos contribuem para garantir o intercâmbio sem problemas entre os organismos estatais. Devemos aproveitar oportunidades como a do Acordo Geral para reafirmar a importância da circulação transfronteiriça de dados, estabelecer mecanismos claros de cooperação transatlântica e criar as salvaguardas e os canais legais apropriados para assegurar que a privacidade dos cidadãos europeus seja respeitada.

 

Um quadro legal claramente definido e mutuamente acordado vai garantir a adopção rápida de medidas para responder às ameaças à segurança quando seja necessário – e apenas quando seja necessário. Essa é a razão pela qual a criação de confiança e a cooperação transatlântica são tão importantes e pela qual a recusa americana em transformar as palavras em garantias legais provavelmente será contra-producente.

 

Viviane Reding é membro do Parlamento Europeu pelo Luxemburgo e foi vice-presidente da Comissão Europeia com responsabilidades na Justiça.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org
Tradução: Raquel Godinho

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