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Daniel Gros - Director do CEPS 21 de Dezembro de 2017 às 14:00

Para onde vai o sistema comercial multilateral?

O mundo deve preparar-se para a erosão do sistema comercial baseado em regras consagrado pela Organização Mundial do Comércio.

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O comércio livre parece ter poucos apoiantes por estes dias. Apesar de os volumes de comércio estarem actualmente a recuperar da recessão do pós-crise e da queda do preço das matérias-primas, a "globalização" tornou-se cada vez mais polémica, como mostra a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos – uma eleição que teve por base a promessa de desfazer os acordos internacionais e a ideia de que os EUA iriam ter uma posição mais dura para com os parceiros comerciais. O que é que isto significa para o futuro do sistema comercial que está assente em regras?

 

Há cerca de 60 anos, quando foram criadas as actuais regras do sistema de comércio mundial, os Estados Unidos eram a única "superpotência" económica mundial, tendo uma posição de domínio inquestionável naquelas que eram, na altura, as indústrias produtivas mais avançadas. Com poder suficiente para impor regras, e domínio suficiente para poder ter uma grande percentagem dos benefícios, os EUA podiam – e fizeram-no – desempenhar o papel de "hegemonia benevolente".

 

À medida que o Japão e a Europa – tendo tido mais tarde um impulso adicional com a integração económica – recuperaram da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos começaram a ver o seu poder diminuir e, nas décadas de 1970 e 1980, os EUA estavam a partilhar o poder, no que diz respeito à agenda comercial mundial, com a Europa. No entanto, e dado que os Estados Unidos e a Europa partilham muitos interesses comuns, aderiram geralmente a uma abordagem de cooperação.

 

Só quando as importações começaram a oprimir um número crescente de indústrias nos Estados Unidos, alimentando o surgimento de défices externos elevados e persistentes, é que a política comercial do país se tornou mais defensiva, criando conflitos com muitos dos seus parceiros comerciais. Ainda assim, mesmo nessa altura, os líderes norte-americanos entenderam o valor de um sistema comercial liberal e multilateral e apoiaram a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, enquanto sucessora do Acordo Geral de Tarifas e Comércio.

 

A criação da OMC representou um grande passo em frente, na medida em que abordava não apenas a questão das tarifas, mas também outras barreiras comerciais, incluindo barreiras indirectas que cresciam devido às regulações domésticas. Dada a complexidade de aferir como é que as regulações domésticas poderiam impedir o comércio, em especial comparando com uma avaliação que permitisse perceber se uma tarifa estava a ser aplicada correctamente, a OMC precisava de um mecanismo eficaz de resolução de litígios, com os membros a concordarem com uma arbitragem vinculativa. O sistema funcionou porque os seus principais membros reconheceram a legitimidade dos painéis independentes, mesmo que, por vezes, eles fornecessem avaliações politicamente inconvenientes.

 

Ainda assim, este reconhecimento está agora cada vez mais em dúvida. Consideremos que tipo de economia apoiaria um sistema assente em regras. Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos apoiaram este sistema dada a sua inatacável supremacia económica. Um sistema aberto baseado em regras seria também altamente apelativo num mundo que tivesse apenas pequenos países, sendo que nenhum dos países poderia esperar ganhar confiando apenas no seu poder económico relativo.

 

As coisas tornam-se mais complicadas quando a economia mundial inclui um pequeno número de economias de dimensão semelhante, maiores que as pequenas economias do exemplo anterior, mas não tão grandes que dominem sozinhas o sistema. Foi esse o cenário que o economista laureado com o Nobel Paul Krugman considerou num ensaio sobre bilateralismo, de 1989, no qual referiu que um mundo que consista em três grandes blocos comerciais forma a pior constelação para o comércio, dado que a falta de cooperação explícita entre os três levaria a um aumento das barreiras comerciais.

 

Infelizmente, esta é exactamente a situação na qual a economia mundial se encontra actualmente. Há três economias ou blocos comerciais dominantes – a China, a União Europeia e os Estados Unidos – com volumes comerciais semelhantes (exportações mais importações) de cerca de quatro biliões de dólares cada. (O Japão, que era um forte candidato há 25 anos, tem agora um volume comercial muito mais baixo). Em conjunto, as economias do G3 representam cerca de 40% do comércio mundial e 45% do PIB mundial.

 

Com o poder económico distribuído desta forma, a cooperação explícita dos três actores é crucial. Ainda assim, há motivos fundamentados pelos quais eles estão reticentes em perseguir tal cooperação.

 

Mesmo que Trump não fosse presidente, o actual sistema comercial mundial representaria problemas para os Estados Unidos, cuja política comercial está há muito focada na produção de bens. (O comércio de matérias-primas sempre foi relativamente livre e a comercialização de bens agrícolas normalmente é considerada especial e, por conseguinte, não sujeita a regras como o princípio "nação mais favorecida", que se aplica aos produtores).

 

Uma vez que os Estados Unidos são auto-suficentes em termos de energia, precisam de exportar menos bens manufacturados do que os países industrializados que não têm recursos energéticos domésticos. As exportações anuais norte-americanas de bens manufacturados representam agora apenas cerca de um bilião de dólares por ano – significativamente menos do que a União Europeia e a China, que exportam quase o dobro em bens manufacturados, apesar de terem economias mais pequenas.

 

Para ser claro, é pouco provável que Trump comece uma guerra comercial total porque qualquer tarifa aplicada pelos EUA prejudicaria os interesses das grandes empresas do país, que investiram elevadas somas em instalações produtivas no estrangeiro. Ainda assim, nenhuma firma individualmente estará disposta a desistir de grande parte do seu capital político para defender um sistema assente em regras porque teria de suportar as perdas, enquanto os seus concorrentes partilhariam os ganhos. O mesmo se aplica aos blocos comerciais do G3: se a União Europeia despender o seu capital político a impedir que os EUA prejudiquem os mecanismos da OMC, a China (e o resto do mundo) vão colher a maioria dos ganhos.

 

Esta dinâmica responde de certa forma ao motivo pelo qual os líderes chineses, apesar de terem proclamado o seu apoio ao sistema comercial multilateral baseado em regras, não tomaram medidas concretas para o reforçar. A resistência dos líderes chineses é provavelmente intensificada pela suposição de que, dentro de uma geração, o seu país vai dominar a economia mundial; nesse ponto, eles poderão já não querer estar sujeitos às regras de outros.

 

Não ajuda que, recentemente, tenham sido conferidas mais competências em todas as áreas da economia ao Partido Comunista da China, com todas as empresas a terem de aceitar um representante do Partido no seu conselho de administração. É difícil ver como um poder económico dominante, governado apenas por um partido – em especial um com um controlo extenso sobre a economia -, aceitaria a primazia das regras e procedimentos internacionais às considerações domésticas.

 

A conclusão é clara. O mundo deve preparar-se para a erosão do sistema comercial baseado em regras consagrado pela Organização Mundial do Comércio.

 

Daniel Gros é director do Centro Europeu para Estudos Políticos.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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