Opinião
O imperialismo credor da China
Assim como os poderes imperiais europeus empregaram a política da canhoeira para abrir novos mercados e entrepostos comerciais, a China usa a dívida soberana para fazer com que outros Estados se curvem à sua vontade, sem ter de disparar um único tiro.
Neste mês de Dezembro, o Sri Lanka, incapaz de pagar a sua onerosa dívida à China, entregou formalmente o seu porto de Hambantota, com uma localização estratégica, ao gigante asiático. Foi uma grande aquisição para a Iniciativa "Uma Faixa, uma Rota" (Belt and Road Initiative, BRI) – que o presidente Xi Jinping chama de "projecto de um século" – uma prova de como pode ser eficaz a diplomacia da armadilha da dívida da China.
Ao contrário dos empréstimos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, os empréstimos chineses têm como colaterais importantes activos nacionais com elevado valor a longo prazo (ainda que tenham uma fraca viabilidade comercial no curto prazo). Por exemplo, Hambantota estende-se pelas rotas comerciais do Oceano Índico, que ligam à Europa, à África e o Médio Oriente à Ásia. Em troca de financiamento e da construção de infra-estruturas em países pobres que precisam, a China exige acesso favorável aos seus activos naturais, desde recursos naturais a portos.
Além disso, e como a experiência do Sri Lanka demostra fortemente, o financiamento chinês pode manietar os países "parceiros". Em vez de oferecer subsídios ou empréstimos com condições especiais, a China concede empréstimos elevados para a realização de projectos, aplicando taxas de mercado, sem transparência, muito menos avaliações de impacto ambiental e social. Como o secretário de Estado dos Estados Unidos, Rex Tillerson, disse recentemente com o BRI a China tem o objectivo de definir "as suas próprias regras e normas".
Para fortalecer ainda mais a sua posição, a China encoraja as empresas a apresentar candidaturas para a compra definitiva de portos estratégicos, em locais onde isso seja possível. O porto mediterrânico de Piraeus, que uma empresa chinesa comprou por 436 milhões de dólares a uma Grécia sem dinheiro, em 2016, vai servir como a "cabeça do Dragão" na Europa.
Ao exercer o seu poder financeiro desta forma, a China procura matar dois coelhos com uma cajadada só. Em primeiro lugar, quer abordar o excesso de capacidade doméstica ao impulsionar as exportações. E, em segundo lugar, espera avançar com os seus interesses estratégicos, incluindo a expansão da sua influência diplomática, garantir recursos naturais, promover o uso internacional da sua moeda e ganhar uma vantagem relativa sobre outras potências.
A abordagem predadora da China – a sua soberba ao garantir Hambantota – é irónica, no mínimo. Nas suas relações com países mais pequenos como o Sri Lanka, a China está a replicar as práticas usadas contra si no período colonial europeu, que começou com a Guerra do Ópio, de 1839-1860, e que terminou em 1949 com o domínio comunista – um período ao qual a China amargamente se refere como o seu "século de humilhação".
A China retratou a restauração da sua soberania sobre Hong Kong, em 1997, após mais de um século de administração britânica, como a correcção de uma injustiça histórica. Ainda assim, e como demostra Hambantota, a China está a agora a criar os seus próprios acordos neocoloniais ao estilo de Hong Kong. Aparentemente, a promessa de Xi Jinping de um "grande rejuvenescimento da nação chinesa" é indissociável da erosão de soberania por parte de pequenos Estados.
Assim como os poderes imperiais europeus empregaram a política da canhoeira para abrir novos mercados e entrepostos comerciais, a China usa a dívida soberana para fazer com que outros Estados se curvem à sua vontade, sem ter de disparar um único tiro. Tal como o ópio que os britânicos exportaram para a China, os empréstimos fáceis que a China concede são viciantes. E, dado que a China escolhe os seus projectos de acordo com o seu valor estratégico de longo prazo, estes projectos podem gerar, no curto prazo, retornos que são insuficientes para as estes países pagarem as suas dívidas. Isto dá à China uma vantagem que pode ser usada, digamos, para obrigar os países que pediram empréstimos a trocar dívida por capital e, por conseguinte, a China expande a sua pegada mundial ao reter um número crescente de países na servidão da dívida.
Mesmo os termos do acordo de locação, por 99 anos, do porto de Hambantota reflecte os termos que eram usados para obrigar a China a alugar os seus próprios portos às potências coloniais ocidentais. O Reino Unido arrendou os Novos Territórios à China, por um período de 99 anos em 1898, fazendo com que a massa territorial de Hong Kong se expandisse em 90%. Ainda assim, os termos do acordo de 99 anos foi fixado meramente para ajudar a dinastia Qing, da etnia Manchu, a salvar a face; a realidade era que se acreditava que todas as aquisições seriam permanentes.
Agora, a China está a aplicar o conceito imperial de arrendamento por 99 anos em terras distantes. O acordo de locação sobre Hambantota, concluído este verão, inclui a promessa de que a China cortaria em 1,1 mil milhões de dólares a dívida do Sri Lanka. Em 2015, uma firma chinesa expôs um contrato, com validade por 99 anos, no porto australiano de Darwin, que é de águas profundas – casa de mais de mil marines norte-americanos – por 388 milhões de dólares.
De forma semelhante, e depois de ter emprestado milhares de milhões de dólares ao altamente endividado Djibouti, a China criou este ano a sua primeira base militar no estrangeiro neste pequeno - mas estratégico - Estado, ficando apenas a algumas milhas da base militar norte-americana – a única estrutura militar permanente dos EUA em África. Preso numa crise de dívida, o Djibouti não teve alternativa a não ser arrendar terra à China por 20 milhões de dólares por ano. A China usou também a sua vantagem sobre o Turquemenistão para assegurar que recebe gás naturas através de um pipeline, algo que acontece sobretudo de acordo com os termos chineses.
Vários outros países, da Argentina à Namíbia e ao Laos, foram ludibriados pela armadilha da dívida da China, o que os obrigou a fazer escolhas agonizantes para evitar o incumprimento. A elevada dívida do Quénia à China ameaça agora transformar o seu movimentado porto de Mombasa – porta para a África Oriental – em outro Hambantota.
Estas situações deveriam servir de aviso para o facto de o BRI ser essencialmente um projecto imperial que visa dar viabilidade ao mítico Reino do Meio. Os estados apanhados na servidão da dívida arriscam-se a perder para a China os seus activos naturais mais valiosos e a sua soberania. A luva de veludo deste novo gigante imperial esconde uma mão de ferro – uma mão que tem força para espremer a vitalidade de pequenos países.
Brahma Chellaney, professor de Estudos Estratégicos no Centro de Pesquisa Política em Nova Deli e membro da Academia Robert Bosch em Berlim, é autor de nove livros, incluindo Asian Juggernaut, Water: Asia’s New Battleground, e Water, Peace, and War: Confronting the Global Water Crisis.
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Tradução: Ana Laranjeiro