Opinião
Controlo de armas depois do massacre na escola de Newtown
Ninguém sabe sequer quantas armas os americanos têm em sua posse.
O número está estimado em cerca de 270 milhões, o que corresponde a quase uma por pessoa, em termos médios. De acordo com uma recente sondagem, 47% dos agregados familiares possui uma arma em casa
O brutal assassinato de 20 crianças e de 7 adultos em Newtown, Connecticut, abala-nos profundamente como indivíduos e exige que, como cidadãos, tenhamos uma resposta. Os Estados Unidos parecem saltar de um assassínio em série para outro – praticamente um por mês, só em 2012. O fácil acesso a armas nos Estados Unidos leva a terríveis taxas de homicídios face a outras sociedades altamente instruídas e abastadas. A América tem de encontrar um caminho melhor.
Outros países fizeram-no. Entre meados da década de 1970 e meados da década de 1990, a Austrália registou vários tiroteios em série. Depois de um massacre particularmente horrível em 1996, um novo primeiro-ministro, John Howard, disse que já bastava. Empreendeu uma severa campanha contra a posse de armas e obrigou os aspirantes a proprietários de armas a submeterem-se a rigorosos processos de solicitação e a apresentarem documentação indicando o porquê de precisarem de uma arma.
As condições para a posse de arma na Austrália são agora bastante estritas e o processo de registo e aprovação pode demorar um ano ou mais. O Executivo de Howard implementou também uma rigorosa política de "recompra" para permitir que o governo possa comprar armas anteriormente detidas pela população.
Esta política resultou. Apesar de não ter deixado de haver crimes violentos na Austrália, os homicídios diminuíram e desde 1996 que não houve um único caso de tiroteio em série em que três ou mais pessoas tenham morrido (que é a definição usada em muitos estudos sobre assassínios em série). Antes da campanha de restrição de armas, registaram-se 13 massacres dessa natureza em 18 anos.
Ainda assim, os Estados Unidos recusam-se a agir, mesmo depois da longa série de chocantes incidentes ocorridos em 2012: um massacre num cinema no Colorado, um ataque contra uma comunidade sikh em Milwaukee, um outro num centro comercial no Oregon e muitos mais antes da matança impiedosa de alunos e professores em Newtown. O "lobby" das armas nos EUA continua a ser poderoso e os políticos receiam combatê-lo. Tendo em conta o ataque armado contra a então congressista Gabrielle Giffords, em 2011, talvez tenham também receio de virem a ser alvos.
Não existem dúvidas de que algumas sociedades estão mais mergulhadas na violência do que outras, mesmo controlando factores óbvios como os níveis de rendimentos e de instrução. A taxa de homicídios nos Estados Unidos é cerca de quatro vezes superior à que se regista em sociedades comparáveis da Europa Ocidental, e as taxas de homicídios na América Latina são ainda maiores do que as dos EUA (e drasticamente maiores do que nos países asiáticos com níveis de rendimentos mais ou menos comparáveis). Como se explicam as taxas incrivelmente elevadas nos EUA e na América Latina?
A violência norte-americana tem raízes históricas. Os EUA e os países latino-americanos são todos sociedades de "conquista", nas quais os europeus governaram sociedades multirraciais. Em muitos destes países, incluindo nos Estados Unidos, os conquistadores europeus e os seus descendentes praticamente dizimaram as populações indígenas, em parte devido às doenças, mas também devido às guerras, à fome, às "marchas da morte" e aos trabalhos forçados.
Nos Estados Unidos e em muitos países latino-americanos, a escravatura também contribuiu para a violência. Os escravos – e as gerações dos seus descendentes – eram sistematicamente assassinados.
Os EUA também desenvolveram uma particular convicção populista de que a posse de arma constitui uma protecção vital contra a tirania do governo. Os Estados Unidos nasceram da revolta dos cidadãos contra o poder imperial britânico. O direito dos cidadãos organizarem milícias para combaterem a tirania do Estado foi, assim, uma ideia que alicerçou o novo país, tendo sido consagrada na Segunda Emenda da Constituição dos EUA, que declara que o povo tem direito a ter armas porque um país precisa de milícias bem organizadas.
Uma vez que as milícias compostas por cidadãos são um anacronismo, os detentores de armas invocam agora a Segunda Emenda para defenderem o simples direito individual a ter uma arma, como se isso, de alguma forma, oferecesse protecção contra a tirania – e têm o apoio de um Supremo Tribunal imprudente e de direita. Assim, a posse de arma ficou perversamente associada à liberdade na vasta subcultura norte-americana da propriedade de armas.
No entanto, em vez da protecção da liberdade, os norte-americanos estão a obter banhos de sangue e medo. A reivindicação de que a posse de arma garante a liberdade é especialmente absurda, atendendo a que a maioria das democracias mundiais adoptaram há muito tempo medidas severas contra a propriedade privada de armas. E desde as reformas de controlo de armas levadas a cabo por Howard, não surgiu qualquer tirano na Austrália.
Em termos simples, a liberdade no século XXI não depende da posse não regulamentada de armas. Com efeito, a cultura americana das armas é uma ameaça à liberdade, depois do assassinato de um presidente, de um senador e de outros líderes, bem como as inúmeras tentativas de assassinato, nas últimas décadas, de personalidades que ocupam cargos públicos.
Ainda assim, a cultura americana das armas continua a ser tão forte quanto pouco documentada. A América salta de um tiroteio para outro e em praticamente todas as ocasiões os políticos apressam-se a declarar a sua constante devoção à posse não regulamentada de armas. De facto, ninguém sabe sequer quantas armas os americanos têm em sua posse. O número está estimado em cerca de 270 milhões, o que corresponde a quase uma por pessoa, em termos médios. De acordo com uma recente sondagem, 47% dos agregados familiares possui uma arma em casa.
O tiroteio em Newtown foi não só especialmente horrível e desolador como também se enquadra num padrão cada vez mais comum: um tipo específico de homicídio-suicídio que tem sido cuidadosamente estudado por psicólogos e psiquiatras. Os solitários, frequentemente com tendências paranóicas, cometem estes actos execráveis como parte do seu próprio suicídio. Eles planeiam com precisão e operam estes massacres em série de inocentes como forma de se vingarem da sociedade e de se glorificarem a eles mesmos através da sua própria morte.
Os autores destes actos não são criminosos endurecidos; muitos deles não possuem quaisquer antecedentes criminais. São patéticos e perturbados e muitas vezes debatem-se com uma grande instabilidade mental durante grande parte das suas vidas. Eles precisam de ajuda – e a sociedade tem de manter as armas fora do seu alcance.
A América vivenciou cerca de 30 massacres nos últimos 30 anos, incluindo os 12 registados em 2012; cada um deles é uma tragédia que arrasa muitas famílias. E ainda assim, de cada vez que há um tiroteio em massa, os detentores de armas gritam bem alto que a liberdade lhes será retirada se não puderem comprar armas de curto alcance e 100 cápsulas de munição.
Com o banho de sangue em Newtown, é chegado o momento de deixar de alimentar esta loucura das armas. A Austrália e outros países têm modelos de como isso pode ser feito: regular e limitar a posse de armas para as utilizações autorizadas. As verdadeiras liberdades da América assentem numa política pública sã.
© Project Syndicate, 2012.
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Tradução: Carla Pedro