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Brecht sobre o Brexit

O mais forte argumento a favor da permanência no mercado único passa pelo facto que colocar em risco a City londrina compromete toda a economia britânica. Os serviços financeiros podem representar somente 3% do emprego, mas geram 11% das receitas fiscais.

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Na sequência da revolta de 1953 dos trabalhadores na Alemanha de Leste, o dramaturgo Dertolt Brecht sugeriu que "se as pessoas tivessem perdido a confiança no governo", o governo teria a vida facilitada, podendo "dissolver as pessoas e eleger outras". Actualmente este é um sentimento que ressoa em muitas pessoas do Reino Unido, como consequência do referendo de Junho sobre o Brexit.

 

No calor da campanha para o referendo, Michael Gove, então o ministro da Justiça e um dos líderes da campanha pelo "leave", disse: "penso que o povo deste país está farto dos especialistas de todo o tipo de organizações com acrónimos que têm estado consistentemente errados". Os seus alvos eram o FMI, a OCDE, a LSE, e todas as outras irmandades de economistas que argumentaram que sair da União Europeia iria causar danos à economia britânica.

 

Desafortunadamente, Gove estava certo – não acerca daquilo que iria acontecer à economia, mas sobre a reduzida consideração dos eleitores do Reino Unido relativamente aos especialistas em economia. Apesar da quase-unânime perspectiva dos profissionais económicos em como o Brexit empurraria o Reino Unido para a recessão e para mais baixas taxas de crescimento no longo prazo, os eleitores foram votar com os seus corações, e não com as suas carteiras. A campanha pelo "remain" foi acusada de recorrer aos avisos dos economistas para tentar assustar os eleitores, levando-os à submissão.

 

Alguns argumentaram que a culpa pelo resultado do referendo cabe aos próprios economistas, porque foram incapazes de falar através de uma linguagem que os cidadãos comuns pudessem perceber. Uma acusação idêntica é feita contra os banqueiros e outros financeiros que, amplamente percepcionados como estando a defender os seus próprios interesses limitados, foram igualmente ineficientes na tentativa de persuasão.

 

Existe, sem qualquer dúvida, alguma verdade nesta censura, mas o problema não foi simplesmente a linguagem ultra complexa e os jargões impenetráveis. Todos os economistas começaram pela assunção de que o Reino Unido estava a ir bem, com um crescimento do PIB acima da média europeia, e desemprego bastante abaixo. Parecia evidente que a pertença à UE era boa para a Grã-Bretanha, especialmente tendo em conta que evitámos entrar no euro e, dessa forma, não ficámos amarrados aos laços monetários e orçamentais delineados em Bruxelas e em Frankfurt.

 

O problema é que este quadro róseo não ressoou junto dos eleitores para lá de Londres e do Sudeste de Inglaterra, devido a razões explicadas com grande clarividência num recente discurso de Andy Haldane, economista-chefe do Banco de Inglaterra.

 

Haldane citou as estatísticas nacionais que mostram que o PIB britânico está 7% acima do pico pré-crise, o emprego 6% mais elevado e que a riqueza aumentou em 30%. Contudo, acrescentou ele, o rendimento nacional per-capita está plano. Os salários reais médios (ajustados à inflação) mal cresceram desde 2005. A população do Reino Unido cresceu, em parte devido à imigração.

 

O aumento da riqueza deveu-se essencialmente aos aumentos nos preços das propriedades situadas em áreas favorecidas, especialmente em Londres, e ao valor das pensões. Se não tiver a sorte de possuir propriedades no Sudeste de Inglaterra, e não está no topo da tabela das pensões, a sua riqueza estagnou ou caiu. A quebra regional dos números do PIB mostra que Londres e o Sudeste são as únicas áreas do Reino Unido onde as pessoas estão melhor, em média, do que estavam em 2009, durante o ponto mais baixo da recessão.   

 

Pode bem ser verdade que o Brexit vá exacerbar estas desigualdades. Se as barreiras comerciais intra-europeias forem aplicadas, e as empresas escolherem investir noutro lugar para acederem ao mercado único europeu, os empregos com baixos salários em regiões desfavorecidas podem desaparecer completamente, ou os salários irão cair ainda mais. Mas isto parece conversa de especialista e os que estiveram na campanha do "leave" têm a resposta a isto: os economistas estão a deitar abaixo o Reino Unido para provarem que as suas estimativas sombrias estavam correctas. Se os especialistas não eram confiáveis antes do referendo, certamente não o serão agora.  

 

É neste contexto pouco ambicioso que os debates sobre o futuro da relação do Reino Unido com a UE irão em breve começar. O que é especialmente desfavorável para a City de Londres. Há claramente um compromisso entre o acesso ao mercado único, que a maioria das instituições financeiras deseja ardentemente, e uma das suas principais condições: liberdade de movimentos para os cidadãos da UE, algo que é visto como tendo contribuído para a estagnação salarial no resto do Reino Unido. Por isso, um resultado que beneficie Londres (que, sem surpresa, votou esmagadoramente pela permanência na UE) tem de ser recomendado com subtileza e cuidado, para que não seja visto como o sacrifício do bem-estar de muitos em favor dos interesses de alguns.

 

O mais forte argumento a favor da permanência no mercado único passa pelo facto que, colocar em risco a City londrina compromete toda a economia britânica. Os serviços financeiros podem representar somente 3% do emprego, mas geram 11% das receitas fiscais. Matar a galinha que põe os ovos fiscais de ouro seria imprudente: se a economia abrandar, que parece ser o melhor que podemos esperar, essas receitas serão seriamente necessárias. E numa altura em que o défice da balança de pagamentos do Reino Unido é superior a 5% do PIB (o segundo maior da OCDE), o superavit comercial de 3% do PIB do sector financeiro tem sido essencial para prevenir uma explosão externa.

 

Não é portanto nenhuma surpresa que a libra esterlina tenha caído acentuadamente desde o voto favorável ao Brexit. Alguns argumentam que a depreciação da taxa de câmbio vai estreitar o défice comercial ao tornar as exportações britânicas mais competitivas, mas a experiência de 2008, quando a libra também caiu de forma pronunciada, mostra que o impacto no défice externo pode não ser significativo. O Reino Unido detém poucas exportações sensíveis ao preço, para as quais existe uma significativa capacidade excedentária disponível para expandir a produção.

 

Pelo que esta é uma época de nervos no mercado financeiro londrino. Precisamos de novos especialistas, sem recorrer a adornos desprezados como o acrónimo FMI, para explicarem os desagradáveis factos da vida económica a uma população altamente desconfiada. Ninguém deve levar a sério a irónica sugestão de Brecht. O povo britânico falou e é preciso encontrar uma forma de alcançar os seus desejos ao mais baixo custo económico possível.

 

Howard Davies é presidente do Royal Bank of Scotland.

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.

www.project-syndicate.org

Tradução: David Santiago

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