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08 de Novembro de 2017 às 14:00

As contradições da China

A China pode estar no caminho da Nova Normalidade ou da Nova Era. Mas o seu destino final continua distante e há muitas contradições que têm de ser resolvidas durante a viagem.

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Os congressos quinquenais do Partido Comunista Chinês são eventos raros onde o ritual e os dogmas são combinados com a introspecção e com a estratégia. O 19º Congresso Nacional, que começou a 18 de Outubro, não é excepção.

 

Não obstante o suspense em torno das potenciais mudanças na liderança do partido, o que tipicamente ocorre no fim do encontro, o relatório político do presidente Xi Jinping, feito no primeiro dia, foi um evento com um impacto elevado. Este evento diz tanto sobre o partido como diz sobre Xi Jinping. Como enfatiza Alice Miller, importante sinóloga na Stanford Hoover Institution, o relatório foi cuidadosamente elaborado durante o período de um ano para transmitir consenso ao organismo mais elevado do partido, o Comité Central, constituído por 205 membros.

 

Três conclusões da abordagem de Xi são particularmente importantes. Para começar, a base ideológica do "Pensamento de Xi Jinping" tem vindo a ser elevada ao mesmo nível que o "Pensamento de Mao Zedong", elevando efectivamente Xi sobre os seus três antecessores – Hu Jintao, Jiang Zemin e mesmo em relação ao venerado Deng Xiaoping. Muito tem sido escrito sobre a consolidação do poder de Xi desde que se tornou secretário-geral, em Novembro de 2012. Mas esta elevação torna-a oficial. Depois de apenas cinco anos no cargo, a liderança do partido sagrou Xi Jinping como uma das duas grandes figuras históricas da China.

 

Em segundo lugar, os relatórios políticos falam com grande confiança sobre uma China que entrou agora numa "Nova Era". Mas ao destacar o adágio chinês que diz que "… a última etapa é ainda metade do caminho", Xi esboçou um futuro ainda mais ambicioso.

 

A China tem agora dois novos objectivos – completar a tarefa de construir a chamada sociedade moderadamente prospera até 2035 e depois firmar a sua posição de Grande Potência até 2050. Ao contrário dos exercícios de definição dos objectivos da China, no passado, agora não há objectivos quantitativos anexados a este "duplo objectivo centenário" (que está proximamente alinhado com os da fundação do Partido em 1921 e com a criação da República Popular da China em 1949). Eles celebram o rejuvenescimento nacional há muito esperado e que Xi denominou como o Sonho Chinês.

 

O terceiro ponto é talvez o mais intrigante. Está formulado na forma da "principal contradição" da China – um conceito marxista que serve como admissão de que um problema fundamental exige resolução. A contradição principal, apesar de tipicamente ser elíptica e ambiciosa, enquadra-se numa discussão rica dos riscos e das oportunidades, estratégia e tática, reformas e governação – tudo isto vai moldar as perspectivas da China num futuro próximo.

 

A grande notícia é que, sob a liderança de Xi Jinping, o Partido reviu pela primeira vez desde 1981 a sua principal contradição. Enquanto a contradição foi anteriormente enquadrada como um "trade off" entre as necessidades da população e a "produção social que estava atrasada" na China, esta contradição é vista agora como uma tensão entre "um desenvolvimento desequilibrado e inadequado" e a "crescente necessidade das pessoas terem uma vida melhor".

 

A reformulação da principal contradição não surgiu do nada. Claramente sinaliza uma mudança de perspectiva de longo alcance, ao nível nacional – de um país com um desenvolvimento pobre para uma sociedade cada vez mais prospera focada em tornar-se numa Grande Potência. É também consistente com uma crítica do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao, que em Março de 2007, alertou que a economia chinesa estava a tornar-se cada vez mais "instável, desequilibrada, descoordenada e [em última análise] insustentável".

 

Durante os últimos dez anos, dois planos quinquenais – o 12º, que começou em 2011, e o 13º que começou em 2016 – e um grande conjunto de reformas adoptadas, em 2013, no âmbito do chamado Terceiro Plenário, tiveram como objectivo resolver os desequilíbrios preocupantes e persistentes da China. O relatório político de Xi não altera no essencial esses esforços. O significado real é que o reequilíbrio está agora consagrado nos fundamentos ideológicos do Partido. É um pilar fundamental do Pensamento de Xi Jinping.

 

O foco do relatório político sobre a principal contradição da China também levanta questões importantes sobre o que é que continua a faltar na estratégia de longo prazo do partido. Há três "contradições secundárias" que se destacam na frente económica.

 

Em primeiro lugar, há uma tensão entre o papel do Estado e o dos mercados nas orientações para alocação de recursos. Isto era uma contradição gritante nas reformas do Terceiro Plenário de 2013, que se focava na combinação aparentemente inconsistente do "papel decisivo" dos mercados no apoio firme à propriedade estatal.

 

Há muito que o partido acredita que estas duas características da vida económica são compatíveis – a chamada economia mista com características chinesas. O relatório político de Xi Jinping louva o modelo misto de propriedade e aspira também a uma economia liderada por grandes empresas com destreza competitiva incomparável ao nível mundial. Mas encobre a questão sensível da reforma das empresas públicas que pode exigir a resolução desta contradição de forma a evitar o problema japonês "zombie", a elevada dívida pública crónica.

 

Em segundo lugar, há a tensão entre a oferta e a procura. De forma consistente com a posição recente de outros oficiais seniores chineses, o relatório político deixa poucas dúvidas sobre as reformas estruturais do lado da oferta, que são agora a principal prioridade dos políticos da área económica. A ênfase dada à produtividade, inovação, diminuição do excesso de capacidade e a subida da produção e dos serviços na cadeia de valor estão em destaque como elementos de principais deste esforço.

 

Ao mesmo tempo, o relatório enfatiza a despesa dos consumidores e os serviços – que agora está no fundo da lista de prioridades da economia moderna. Ainda assim, focar-se na oferta sem ser dada uma atenção igual às bases da procura agregada é uma omissão desconcertante e provavelmente preocupante.

 

A última tensão secundária pode ser encontrada no contraste entre o caminho e o destino. Apesar das declarações presentes no relatório político de Xi, há bons motivos para acreditar que a economia chinesa está apenas na fase inicial da sua há muito anunciada transformação estrutural. O seu sector dos serviços está a crescer rapidamente, embora ainda numa fase embrionária, e representa apenas 52% do PIB. O consumo das famílias, que está a crescer rapidamente, é menos de 40% do PIB.

 

A China pode estar no caminho da Nova Normalidade ou da Nova Era. Mas o seu destino final continua distante e há muitas contradições que têm de ser resolvidas durante a viagem.

 

Stephen S. Roach, membro da Universidade de Yale e antigo chairman do Morgan Stanley Asia, é o autor de Unbalanced: The Codependency of America and China.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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