Opinião
A patologia da liderança britânica
Quando exigimos mais aos líderes empresariais do que aos líderes políticos eleitos, devemos preocupar-nos com o futuro - e não apenas no Reino Unido.
Há falta de liderança política ética em todo o mundo, desde os Estados Unidos à Turquia e às Filipinas. Mas talvez o exemplo mais marcante de liderança desonesta tenha sido no Reino Unido, onde o referendo sobre o Brexit e as suas consequências causaram mais instabilidade do que todas as experiências do Reino Unido numa década típica.
Nas semanas após o referendo, David Cameron, o primeiro-ministro que convocou o referendo, renunciou ao cargo, e a sua sucessora Theresa May nomeou um novo governo. Embora alguns dos defensores do Brexit – incluindo o antigo mayor de Londres, Boris Johnson - estejam agora no governo, nenhum dos que liderou a campanha para deixar a União Europeia é responsável ??pela sua realização. A própria May apoiou a campanha a favor do "Remain".
Ao mesmo tempo, o Partido Trabalhista mergulhou no caos. Quase todo o governo sombra renunciou, tendo perdido a confiança no líder do partido Jeremy Corbyn, e os esforços para o desafiar têm sido excepcionalmente amargos, com os adeptos de Corbyn a atirarem um tijolo pela janela do gabinete da sua rival.
A turbulência pós-referendo é ainda mais profunda. O número de crimes de ódio relatados desde o referendo aumentou em 500%, num clima de descontentamento e incerteza social, política e económica. Mais de 100 mil milhões de libras "desapareceram" do FTSE 100 nos primeiros dez minutos de negociação após o anúncio do resultado do referendo. E a libra atingiu mínimos de 35 anos face ao dólar.
Uma das lições mais marcantes do caso britânico - e muitos outros - é que os esforços promissores para obrigar os líderes empresariais a prestarem contas e assegurarem que as empresas se comportam eticamente não foram transpostos para os nossos sistemas políticos. Os nossos líderes eleitos - muitas vezes os primeiros a exigir estratégias sólidas, planeamento de sucessão e prestação de contas no sector privado – não têm conseguido praticar o que pregam.
Esperamos que os líderes empresariais sejam caoazes de planear a certeza na incerteza e gerir correctamente os riscos. No ano passado, pequenas e grandes empresas do Reino Unido, da União Europeia e do resto do mundo realizaram inúmeras reuniões e sessões de planeamento de alto nível para se prepararem para o Brexit. Quando os resultados chegaram, pareceu que as únicas pessoas que não se tinham preparado para a vitória da campanha do "Leave" foram as que a lideraram. Na verdade, de acordo com um recente relatório do comité de assuntos externos do Parlamento, a decisão de Cameron "de não instruir os departamentos chave, incluindo dos Negócios Estrangeiros, para se prepararem para a possibilidade de o eleitorado votar a favor da saída da União Europeia foi uma negligência grave".
O único líder político do Reino Unido que rapidamente deu um passo em frente com uma estratégia clara e decisiva foi a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon. O seu plano é realizar outro referendo sobre a independência da Escócia e voltar à UE.
E foi um canadiano não eleito, Mark Carney, o governador do Banco de Inglaterra,que ajudou a acalmar os mercados. Em 2015, Carney foi posto sob pressão para formar uma comissão com o objectivo de planear o cenário de saída da União Europeia. E no início de Julho, foi chamado para depor perante o Comité do Tesouro da Câmara dos Comuns, acusado de se ter inclinado a favor do "Remain" no período que antecedeu o referendo, simplesmente porque apresentou uma avaliação sombria (e precisa) das consequências económicas da vitória do "Leave".
Quando Nigel Farage, um dos líderes mais extremos da campanha do "Leave", decidiu renunciar à liderança do Partido da Independência do Reino Unido a 4 de Julho, disse: "Eu quero minha vida de volta." Se isso soa familiar, é porque Tony Hayward, o então CEO da BP, usou a mesma frase quando falou do impacto - sobre ele - do derramamento de petróleo no Golfo do México, em 2010.
Quando Hayward disse essa frase, a condenação foi rápida. As suas palavras transmitiram uma completa falta de empatia para com as pessoas que foram realmente afectadas pelo derramamento. Da mesma forma, Farage, tendo ajudado a conduzir o Reino Unido para o desastre, afastou-se quando o objectivo foi alcançado. É tão mortificante como ver Johnson nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros, dado o seu historial de mentiras, declarações xenófobas e observações insultuosas sobre outros líderes mundiais. Mas este, pelo menos, vai enfrentar publicamente a mancha da catástrofe britânica.
O problema mais profundo no Reino Unido é que não há alternativa. O Partido Trabalhista está simplesmente demasiado dividido para tomar o poder. Se Corbyn fosse um CEO que perdeu a confiança de toda a sua equipa executiva e do conselho, seria forçado a renunciar ou seria demitido. Se um presidente não tem o respeito da sua equipa de liderança, não pode conduzir a empresa ao sucesso, mesmo que a maioria dos trabalhadores ache que ele é o maior. O mesmo se aplica aos partidos políticos, embora muitas vezes eles demorem mais tempo a agir, fazendo com que a empresa - neste caso, o Reino Unido – saia prejudicada.
Com muito poucas excepções, o referendo sobre o Brexit expôs o que há de pior nos líderes do Reino Unido. Se um CEO mentisse aos investidores e consumidores como Farage, Johnson e Michael Gove mentiram aos eleitores do Reino Unido, as consequências seriam rápidas e dolorosas, tanto dos órgãos reguladores como do mercado. Eles não poderiam simplesmente demitir-se e seguir em frente, muito menos receber um papel futuro na organização (e certamente não um alto cargo). Eles seriam multados (ou pior), e profissionalmente ostracizados.
Quando exigimos mais aos líderes empresariais do que aos líderes políticos eleitos, devemos preocupar-nos com o futuro - e não apenas no Reino Unido. Se isso pode acontecer lá - na terra natal de Edmund Burke e Tony Benn - pode acontecer em qualquer lugar.
Lucy P. Marcus é CEO da Marcus Venture Consulting.
Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
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Tradução: Rita Faria