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A harmonia do G20 sem Trump

Enquanto o maestro liderava a orquestra numa performance de tirar o fôlego, a verdadeira maestrina da noite era Merkel.

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O Freunde, nicht diese Töne! (Oh amigos, mudemos de tom!), proclamou o barítono na inspiradora performance da Nona Sinfonia de Beethoven aos líderes do G20 em Hamburgo. A emocionante frase que compõe o início do Hino à Alegria, o apelo de Beethoven à fraternidade universal, foi a mensagem perfeita para os líderes globais sentados na sala de concertos. A presidente do G20, a chanceler alemã Angela Merkel, fez realmente avanços notáveis na canalização do espírito de Beethoven.

 

Esta cimeira do G20, naturalmente, foi a primeira com Donald Trump como presidente dos EUA. Os tons discordantes da cimeira, ecoados nas secções tormentosas da sinfonia de Beethoven, emanaram inteiramente dos Estados Unidos. Trump não serve para apelar ao amor fraternal. Ele é mais dado à divisão étnica e religiosa, à hostilidade para com os vizinhos (insistindo novamente na cimeira que os EUA construirão um muro na fronteira mexicana e que o México pagará por isso) e a imagens maniqueanas de uma civilização ocidental vulnerável ao colapso nas mãos do islamismo radical, em vez de no auge de riquezas inimagináveis e grandes proezas tecnológicas.

 

Enquanto o maestro liderava a orquestra numa performance de tirar o fôlego, a verdadeira maestrina da noite era Merkel. Que grande golpe de génio levar os líderes do G20 para a espectacular sala de concertos Elbphilharmonie de Hamburgo, em si mesmo um triunfo da visão arquitectónica, para se inspirarem talvez na maior obra musical da cultura universal, com a sua mensagem de harmonia mundial.

 

O concerto em si ofereceu várias camadas de significado. A Alemanha de Beethoven renasceu das cinzas da Alemanha de Hitler. Hoje, a Alemanha é um país mundialmente admirado, que ama a paz e abomina a guerra, democrático, próspero, inovador e cooperativo.

 

Ao mesmo tempo, o génio de Beethoven pertence não apenas à sua Alemanha natal, ou ao Ocidente, mas a toda a humanidade. A sua musicalização da ode poética de Schiller reflecte as aspirações verdadeiramente globais do Iluminismo. Sim, o Iluminismo foi um fenómeno europeu; mas estava absolutamente consciente do mundo inteiro e dos perigos do particularismo e do chauvinismo. Na Alemanha, estava imbuído da visão de Immanuel Kant de "paz perpétua", fundamentada no "imperativo categórico" de agir de acordo com as máximas que podem ser transformadas numa lei universal, e não de acordo com os caprichos pessoais e o interesse próprio.

 

A "América Primeiro" de Trump é uma afronta descarada à ética kantiana e uma ameaça à paz. A sua ruptura com o resto do mundo no acordo de Paris sobre o clima é o seu acto mais arrepiante de interesse pessoal até ao momento. A sua origem está nas ambições de algumas empresas dos EUA - lideradas pela Koch Industries, Continental Resources, Peabody Energy, ExxonMobil, Chevron e algumas outras - de maximizar os lucros do fracking de gás e petróleo, da perfuração de profundidade e da mineração e utilização contínuas de carvão; e que se lixem as consequências para o clima.  

 

Estas empresas de combustíveis fósseis financiaram as campanhas dos representantes republicanos e dos senadores que pediram a Trump que se retirasse do acordo de Paris. Eles, e os políticos republicanos que constam da sua folha de pagamentos, estão preparados para sacrificar o bem-estar dos compatriotas, e mesmo das suas próprias famílias, já para não falar do resto do mundo e das gerações futuras. A ganância über alles.

 

A questão que precedeu a cimeira do G20 era clara: será que outros países seguiriam os Estados Unidos, colocando imprudentemente o interesse próprio acima do bem comum? Os rumores andavam no ar. O The New York Times levantou o véu sugerindo que Trump arrastaria consigo a Rússia, a Arábia Saudita, a Turquia e até a Indonésia para uma coligação de petroestados com o objectivo de enfraquecer ou revogar o acordo de Paris.

 

Por este motivo, o futuro da cooperação global estava em jogo em Hamburgo. Foram precisos muitos anos - uma geração completa desde a Cimeira da Terra do Rio de 1992 - para chegarmos ao acordo climático de Paris, aprovado por unanimidade por todos os 193 Estados-membros da ONU em Dezembro de 2015. Poderia o lóbi do petróleo dos EUA, com os seus lacaios políticos, levar o mundo novamente para a casa de partida?

 

Merkel provou mais uma vez ser um baluarte da razão e eficiência. Não entrou em pânico, nem levantou a voz nem fez exigências. Mas deixou claro qual era a sua posição, a da Alemanha e a da Europa. Na sequência da reunião do G7 no final de Maio, Merkel lamentou o facto de a Europa não poder mais contar com os EUA. Nos bastidores, ela e o corpo diplomático da Alemanha, altamente profissional, trabalharam horas extra para garantir o consenso - excluindo a América - no G20.

 

Quando na sexta-feira, 7 de Julho, os líderes do G20 se dirigiam para o concerto, as suas equipas de trabalho debatiam o texto final. Será que a Rússia, a Arábia Saudita e outros jogariam o jogo de Trump? Quando o comunicado apareceu, diplomatas e activistas do clima em todo o mundo suspiraram de alívio. Todos os outros países do G20 resistiram ao estratagema norte-americano. O comunicado foi simples, preciso e reconfortante no que respeita às alterações climáticas: "Os líderes dos outros membros do G20 afirmam que o Acordo de Paris é irreversível...Reafirmamos o nosso forte compromisso com o Acordo de Paris, agindo rapidamente para a sua plena implementação..."

 

O comunicado contém um parágrafo com a linguagem ambígua de Trump. Os EUA afirmaram "o seu forte compromisso com uma abordagem que reduza as emissões, ao mesmo tempo que apoia o crescimento económico e melhora as necessidades de segurança energética" e "trabalhará em estreita colaboração com outros países para os ajudar a aceder e a usar combustíveis fósseis de forma mais limpa e eficiente e a implantar recursos renováveis e outras fontes de energia limpas ". Como diria um adolescente: "Whatever".

 

Em várias outras questões globais, foi alcançado um consenso total. O G20 reafirmou que "o comércio internacional e o investimento são motores importantes da produtividade, da inovação, da criação de emprego e do desenvolvimento do crescimento". Todos os líderes do G20 voltaram a comprometer os seus países com a cobertura universal no que respeita à saúde (outra mensagem clara para Trump, para o líder da maioria do Senado, Mitch McConnel, e para o líder dos republicanos na Câmara dos Representantes Paul Ryan) e com fortalecimento dos sistemas de saúde. Reiteraram o seu compromisso com o desenvolvimento sustentável e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

 

Quando o concerto terminou, os líderes do G20 e o resto da sala levantaram-se numa prolongada ovação de pé. Os aplausos foram para Beethoven, Kant e Merkel.

 

Jeffrey D. Sachs, professor de Desenvolvimento Sustentável e de Políticas e Gestão de Saúde  na Universidade de Columbia, é director do Centro para o Desenvolvimento Sustentável.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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