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Os perigos da negação demográfica

O primeiro passo para resolver qualquer problema é reconhecê-lo. Muito do que se diz actualmente sobre o dividendo demográfico é um exercício perigoso de negação. É tempo de encarar a realidade.

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Nas economias emergentes, os benefícios de um "dividendo demográfico" tornaram-se um refrão familiar. Políticos e líderes empresariais, seja na Índia, na Nigéria, no Paquistão ou na Tanzânia - falam cada vez mais de como uma população jovem e em rápido crescimento criará grandes oportunidades de investimento e estimulará o rápido crescimento económico. Mas a realidade é que, em muitas economias emergentes, o crescimento rápido da população representa uma grande ameaça ao desenvolvimento económico, e o progresso tecnológico tornará essa ameaça ainda mais severa.

 

Para começar, o termo "dividendo demográfico" está a ser mal utilizado. O termo foi usado originalmente para descrever uma transição em que os países assistiram simultaneamente a um aumento extraordinário na população em idade de trabalhar e a uma queda significativa na fertilidade. Essa combinação gera um rácio elevado de trabalhadores em relação a dependentes – reformados e crianças – facilitando que grandes níveis de poupança suportem investimento suficiente para promover um crescimento rápido do stock de capital. 

 

Ao mesmo tempo, o decréscimo acelerado da fertilidade garante que a geração seguinte herda um grande stock de capital per capita: e as famílias pequenas têm mais possibilidades de garantir despesas mais elevadas em educação pública ou privada por criança, levando a rápidas melhorias na qualificação da força de trabalho. A Coreia do Sul, a China e alguns outros países da Ásia Oriental beneficiaram largamente de um dividendo demográfico nos últimos 40 anos.

 

Mas sem uma queda rápida nas taxas de fertilidade, não há dividendo. Se a fertilidade continua alta, a proporção baixa de reformados em relação aos trabalhadores é compensada por um índice elevado de dependência infantil, dificultando o suporte a grandes despesas de educação por criança. E se cada nova corte de trabalhadores é muito maior do que a anterior, o crescimento do stock de capital per capita - seja em infra-estrutura ou em instalações e equipamentos - é retido. Populações em idade activa que crescem muito rapidamente também tornam impossível criar empregos com rapidez suficiente para evitar o subemprego generalizado.

 

Esta é a situação em que grande parte da África subsaariana está presa. Com taxas moderadas de crescimento do PIB (em média 4,6% na última década), e um crescimento anual de 2,7% da população, o rendimento per capita tem vindo a subir menos de 2% ao ano, o que compara com a taxa de 7% na China. Com este ritmo de progresso, África não atingirá o padrão de vida das economias avançadas de hoje até meados dos anos 2100.

 

O Paquistão enfrenta um desafio ligeiramente menos grave - mas ainda assim significativo. A demografia da Índia varia de acordo com a região: enquanto as taxas de fertilidade estão agora em 2 ou menos filhos por mulher em estados economicamente dinâmicos, como Maharashtra e Gujarat, os grandes estados do norte de Bihar e Uttar Pradesh ainda enfrentam fortes adversidades, em termos demográficos.

 

É óbvio, há décadas, que a fertilidade elevada pode conter o crescimento per capita. E agora os custos de negar essa possibilidade estão prestes a aumentar, especialmente para os países em desenvolvimento. Existem apenas alguns exemplos históricos de passagens bem-sucedidas da pobreza para a produtividade e padrões de vida das economias avançadas e, em todos os casos - Japão entre 1950 e 1980, Coreia do Sul entre 1960 e 1990 e a China nas últimas quatro décadas - o crescimento rápido da produção orientada para a exportação tem desempenhado um papel central. O progresso tecnológico ameaça agora essa rota para a prosperidade.

 

As tecnologias da informação acabarão por nos permitir automatizar a grande maioria dos empregos actuais. Apesar da grande incerteza sobre a duração que a essa transição terá, estudos recentes deixam claro que os trabalhos que envolvem actividade física previsível são os mais vulneráveis no curto prazo. A produção que envolve o manuseamento de materiais pesados - pensemos na produção de automóveis - já é altamente automatizada e ainda se tornará mais. Mas assim que os inovadores conseguirem criar robôs capazes de manipular outro tipo de materiais, muitos empregos existentes na confecção e produção têxtil também estarão ameaçados.

 

Quando isso acontecer, a produção industrial pode voltar às economias avançadas, mas com poucos empregos. A "Speedfactory" da Adidas em Ansbach, na Alemanha, produzirá em breve 500 mil sapatos por ano com apenas 160 trabalhadores. Um relatório recente da Organização Internacional do Trabalho estima que 60 a 90% dos empregos com baixos salários que existem actualmente na indústria têxtil em vários países asiáticos podem ser automatizados.

 

Mas os maiores desafios não acontecerão no Sudeste Asiático, mas em partes da Índia, no Paquistão e, sobretudo, em África. A Índia tem de criar 10 a 12 milhões de novos empregos por ano só para acompanhar a população em idade de trabalhar e muitos mais para absorver o enorme número de trabalhadores que estão já subempregados. Mas alguns dos planos não são realistas: um relatório recente desafia a conversa oficial de dez milhões de novos empregos na produção de vestuário, sugerindo que três milhões é um cenário mais provável.

 

Quanto a África, a ONU estima que a população entre 20 e 65 anos atingirá 1,3 mil milhões em 2050 e 2,5 mil milhões em 2100, contra 540 milhões hoje. Esses jovens habitarão um mundo onde apenas uma pequena parte vai encontrar trabalho na produção orientada para a exportação. A população da China com idades entre 25 e 64 anos, em contraste, enfrenta uma possível queda de 930 para 730 milhões, elevando os salários reais e criando poderosos incentivos para um investimento elevado em automação. Num mundo de possibilidades radicais de deslocação do trabalho humano, muitos trabalhadores serão um problema muito maior do que muito poucos.


 

Não há respostas fáceis para os problemas que muitas economias emergentes enfrentam agora. A criação de emprego deve ser maximizada em sectores menos vulneráveis à automação a curto prazo: empregos na construção e turismo podem ser mais sustentáveis do que na produção. Políticas que permitam uma descida voluntária da fertilidade, através da educação feminina e do acesso facilitado à contracepção, devem ser prioridades; o Irão, onde a taxa de fertilidade caiu de 6,5 na década de 1980 para menos de 2 até 2005, mostra o que é possível alcançar mesmo em sociedades religiosas tradicionais.

 

Mas o primeiro passo para resolver qualquer problema é reconhecê-lo. Muito do que se diz actualmente sobre o dividendo demográfico é um exercício perigoso de negação. É tempo de encarar a realidade.

 

Adair Turner é presidente do Institute for New Economic Thinking e antigo chairman da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido. O seu último livro é Between Debt and the Devil.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org

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