Opinião
Uma questão de esfera de influência
Primeiro, foi o chefe do Pentágono, Robert Gates, a dizer à Comissão das Forças Armadas da Câmara dos Representantes, que os perigos se acumulam pois não há ideia do que poderá ocorrer "na Rússia e China, na Coreia do Norte, no Irão e noutros países". Log
Logo a seguir, quando há uma semana a imprensa de Moscovo denunciava as declarações alegadamente provocatórias do secretário da Defesa de Washington, veio o general Yuri Baluievski, chefe do estado-maior das forças armadas russas, afirmar que Moscovo enfrenta ameaças mais graves do que os perigos da Guerra Fria. A cooperação com o Ocidente não reforçou a segurança militar da Rússia, sintetizou Baluievski.
Vladimir Putin, por sua vez, chegou a Munique e proclamou que o uso e abuso da força militar pelos Estados Unidos faz perigar a segurança mundial e que a expansão da NATO até às fronteiras da Rússia contribui em larga medida para "a diminuição da confiança mútua".
Gates depreciou as considerações de Putin e replicou que já bastara uma Guerra Fria e, então, muito diplomaticamente, foi a vez do ministro da Defesa russo, Serguei Ivanov, retorquir que "de um ponto de vista puramente militar a Rússia há muito renunciou ao estatuto de superpotência".
Ivanov frisou, ainda, que o orçamento militar de Moscovo representa apenas quatro por cento dos gastos dos Estados Unidos que, fez notar, duplicam os dispêndios do auge da Guerra Fria.
Uma potência ameaçada
Acumulam-se queixas, culpas e desculpas, mas é evidente para quem acompanha os debates em Moscovo que o diagnóstico das chefias militares russas é bastante claro: a maior ameaça à segurança e soberania do país advém da crescente influência dos Estados Unidos nas antigas áreas de controlo soviético e da expansão da NATO.
O general Baluievski tem vindo, ainda, a sublinhar em diversas ocasiões que, mais do que riscos terroristas e separatistas, a "propaganda hostil" (as intromissões da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa no antigo espaço político soviético, por exemplo, nas objecções de Putin) é uma das ameaças mais significativas à segurança e soberania da Rússia.
Retórica excluída cumpre dizer que os recentes aumentos de despesas militares ma Rússia (rondando os 180 mil milhões de euros nos próximos 8 anos) visam recuperar certa capacidade de projecção militar no exterior, mas concentram-se, essencialmente, na capacidade de dissuasão estratégica nuclear.
Resmas de papel sobre os planos de construção de um novo porta-aviões, a agregar ao único em serviço face a doze unidades norte-americanas, ou acerca do moroso reforço de efectivos profissionais no corpo de 1,1 milhões de homens das forças armadas, para não falar da reconversão do sistema de satélites militares, não escondem a impossibilidade assumida pelo estado-maior russo de competir em paridade com o potencial dos Estados Unidos.
Por maioria de razão todos os estrategos russos continuam a assumir como fiável a lógica MAD (da celebrada capacidade de destruição mútua assegurada) num contexto bipolar Moscovo-Washington, mas não escondem também o seu nervosismo quanto à proliferação de focos independentes de projecção militar nuclear.
Quem pode impor o quê a quem?
Putin acusa os Estados Unidos de desrespeito pelos acordos de 1999 de limitação de forças convencionais na Europa, invocando, além disso, os projectos de recolocação de radares e defesas anti-mísseis na Polónia e República Checa, além das Ilhas Aleutas, no extremo norte do Pacífico.
Quando Putin se insurge contra a recusa de negociações por parte de Washington sobre a militarização do espaço, temos o caso do líder que afirma não recuar, nem ceder, mas que tão pouco tem capacidade própria para se assumir como foco de resistência ou pólo de novas alianças pois o sustentáculo económico de toda a estratégia está dependente das exportações de hidrocarbonetos que financiam cerca de 30 por cento do orçamento do estado.
A exasperação do Kremlin tem vindo a aumentar pois apesar de na cimeira de Julho, em São Petersburgo, do G8 ter ficado assente a próxima adesão da Rússia à Organização Mundial do Comércio, Washington continua a referir a necessidade do Congresso proceder à anulação da emenda Jackson-Vanik, que desde 1974 limita as relações comerciais com Moscovo, para protelar a entrada russa.
O crescimento propiciado pelas receitas das exportações de hidrocarbonetos não tem sido acompanhado de diversificação económica e aumentos de produtividade significativos e o PIB da Rússia ainda não atingiu os níveis do final do período soviético, enquanto o irreversível declínio demográfico acelera num contexto de crescentes disparidades sociais.
O tempo escasseia, portanto, para Moscovo concretizar a ambição estratégica de tutelar a sua zona de influência continental que continua, por sua vez, a ser posta em causa pelos planos de expansão da NATO e o apoio político concedido por Washington e as principais potências europeias a moldovos, ucranianos e georgianos nos seus conflitos territoriais e de soberania com a Rússia.
A constatação de que a cooperação com o Ocidente tem limites e que o estatuto de potência continental da Rússia não é de facto reconhecido por Washington explicam a crueza das declarações de Putin em Munique.
Na versão desapiedada de Lenine a política resumia-se ao Kto Kovo: Quem pode impor o quê a quem.
Na exasperação de Putin não sobressai o retorno à política de confronto da Guerra Fria, antes a constatação de que a Rússia não se consegue impor e ser respeitada como parceiro estratégico com direitos incontornáveis sobre a perdida esfera de influência soviética.
O estrangeiro próximo, como os russos denominam os estados que assumiram a independência depois do colapso da União Soviética, está cada vez mais distante e a perda de influência estratégica da Rússia é um risco cada vez mais presente.