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Uma avó extraordinária

Certos problemas da matemática acompanham a humanidade desde os primórdios do pensamento científico. Um deles, aparentemente bastante básico, diz respeito à forma como podemos preencher completamente um...

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Certos problemas da matemática acompanham a humanidade desde os primórdios do pensamento científico. Um deles, aparentemente bastante básico, diz respeito à forma como podemos preencher completamente um plano com uma figura geométrica. A invenção do mosaico, pequeno quadrilátero de vidro, respondeu a esta questão, permitindo forrar as salas de gregos e romanos com belos desenhos coloridos. Também os árabes recorreram ao quadrado - forma mais evidente de preencher uma superfície -, desenvolvendo a técnica do azulejo que os portugueses tão bem souberam utilizar, por cá - basta pensar em Lisboa - e por esse mundo fora, com o Brasil em destaque.

Cedo se percebeu que triângulos e hexágonos também permitem preencher um plano sem deixar espaços vazios. A maioria dos mosaicos de pavimentação e decoração, que continuam a produzir-se nos nossos dias, derivam de uma destas três figuras geométricas, quer na sua versão regular, quer nas variantes irregulares. Aliás, todas as figuras com 3 ou 4 lados preenchem o plano, enquanto com 6, para além do hexágono regular, só mais 3 irregulares o conseguem fazer.

Como sempre acontece com a inquisitiva mente humana, alguém terá feito a pergunta: e os pentágonos? Todos sabemos, pelo menos pela bola de futebol, que um pentágono regular não consegue preencher totalmente uma superfície, precisando da ajuda de outra figura geométrica que no caso da bola é um hexágono. E os irregulares? Até 1918 ninguém descobriu nenhum.

Então, em plena guerra mundial, o estudante Karl Reinhardt da Universidade de Frankfurt, apresenta na sua tese de doutoramento cinco pentágonos irregulares que preenchem o plano. A partir daí a vontade de encontrar mais ocupa a mente de inúmeros matemáticos. Mesmo assim é preciso esperar cinquenta anos para em 1968 Richard Kershner demonstrar ter descoberto mais três, dando aliás o assunto por encerrado pois, segundo ele, não podiam existir mais. Declaração precipitada como se verá.

Em 1975, um artigo sobre o assunto publicado na revista "Scientific American" estimula a curiosidade de alguns leitores. Um deles, Richard James III, cientista de computação, acaba por descobrir mais um, estabelecendo-se então em nove o número de pentágonos capazes de cobrir totalmente uma superfície. Até aqui o problema é assunto de académicos. Mas eis que a senhora Marjorie Rice, dona de casa, mãe de cinco filhos e leitora assídua desta revista popular de divulgação científica - desde logo porque um dos seus filhos trabalha nela - fica curiosa com a história dos pentágonos. Entre a lida da casa, a atenção dada aos filhos e as tartes de maçã, pega num papel e lápis e põe-se a fazer contas e desenhos. Não tem formação académica, não conta com a ajuda de um computador, mas nos dois anos seguintes descobre mais quatro pentágonos, entrando assim directamente para a história da matemática.

Depois, em 1985 Rolf Stein da Universidade de Dortmund descobre o 14º pentágono capaz de preencher o plano. Até ao momento não se sabe se há mais.

A ciência evolui por necessidade e por curiosidade. A crescente complexidade dos assuntos levou naturalmente a uma especialização, que está na base do ensino, da vida académica e da investigação. Mas a curiosidade, por si só, nunca deixou de constituir uma fonte fundamental do conhecimento científico, tanta vez pela obra de "meros" amadores como a senhora Rice. Para mais, com o aparecimento da Internet - que depressa se tornou no grande repositório do saber acumulado pela humanidade ao longo de séculos - qualquer um pode ter acesso aos problemas e às principais metodologias que ajudam a resolvê-los. Em consequência, muita da inovação que vai fazendo o nosso mundo tem hoje origem em verdadeiros amadores que nas suas casas ou em garagens mudam o mundo.

O amadorismo e o auto-didactismo deixaram de ser vistos como algo de pejorativo ou menor. Pelo contrário, por vezes é preciso recorrer a uma experimentação lateral, ou seja, não informada, para se conseguir resolver um problema. Aqueles que se especializam numa determinada matéria frequentemente não conseguem pensar fora do seu próprio campo de conhecimento, pelo que alguém que se atreva a pensar diferente, cometer erros e experimentar e continuar a experimentar pode, por vezes, ser mais bem sucedido. E o leitor, não quer tentar encontrar o 15º pentágono?
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