Opinião
Um presidente desconcertante e dois chefes de governo equivocados
A vontade de "êxito instantâneo" é, afinal, uma ilusão nefasta, o Iraque uma "tarefa morosa" e difícil, mas o que conta é a determinação porque o triunfo é possível a menos que se opte pela retirada, ...
A vontade de "êxito instantâneo" é, afinal, uma ilusão nefasta, o Iraque uma "tarefa morosa" e difícil, mas o que conta é a determinação porque o triunfo é possível a menos que se opte pela retirada, tal a lição que, trinta e um anos após a queda de Saigão, George W. Bush diz ter retirado da guerra do Vietname ao compará-la com a actual situação em terras de Mesopotâmia.
À desconcertante tirada de Bush na presença do seu aliado australiano John Howard, no primeiro dia de visita a Hanói, veio juntar-se a admissão por Tony Blair de que a intervenção no Iraque foi "um desastre", mas não por erros de planeamento ou devido a qualquer erro estratégico.
Mais articulado do que o presidente norte-americano, o chefe de governo britânico culpava "as dificuldades" por motivo da violência desencadeada pela Al Qaeda e os insurrectos sunitas, por um lado, e pelas milícias xiitas apoiadas pelo Irão, por outro, contra a vontade de paz da maioria dos iraquianos.
Determinado a manter tropas no Iraque em apoio do governo de Bagdade, Blair na sua entrevista ao canal inglês da Al Jazeera, concluiu que a dificuldade da situação residia na acção dos mesmos "elementos estrangeiros" que alimentam o extremismo global e, consequentemente, só uma estratégia de pacificação abarcando todo o Médio Oriente e o Afeganistão poderá conter a ameaça de uma corrente minoritária islamita "perversa e aberrante".
Blair em busca de crédito e parceiros
A "estratégia global" de Blair passa por promover "forças moderadas" e oferecer uma parceria para "uma solução construtiva" à Síria e ao Irão a partir do momento em que designadamente Teerão abdique do apoio ao terrorismo e cumpra as suas obrigações internacionais desistindo do programa militar nuclear. A recusa de cooperação por parte de sírios e iranianos implica o isolamento internacional dos dois regimes, na visão do chefe de governo britânico.
Ignorando as advertências de Blair, Damasco e Teerão rapidamente tomaram a iniciativa diplomática para alargarem a sua margem de manobra no conflito sem esperarem por eventuais convites para negociações. A Síria restabelecia as relações diplomáticas com Bagdade cortadas em 1982 e o presidente Ahmanidejad convidada os homólogos iraquiano e sírio para uma cimeira em Teerão.
Confrontada com as manchetes sobre o "desastre iraquiano", Downing Street viu-se obrigada a rectificar o sentido das declarações de Blair, precisando que o derrube de Saddam Hussein e a formação de um governo democraticamente eleito em Bagdade só podiam considerar-se como evoluções positivas e que o primeiro-ministro se limitara a constatar "as dificuldades existentes".
As precisões e rectificações dificilmente terão elevado o crédito político de Blair nas capitais do Médio Oriente que, para além do caos da invasão do Iraque, ainda estão longe de lhe perdoar o apoio concedido a Israel quando Londres se recusou a apelar a um cessar-fogo imediato, em Julho, na fase inicial do ataque ao Líbano.
De volta a Hanói, Condoleezza Rice, contagiada pelo desconcerto do seu presidente, afirmava, na mesma altura em que Blair se esquivava à apreciação desastrosa, que os iraquianos tinham boas lições a receber dos vietnamitas.
No entender da secretária de estado os iraquianos devem preservar a sua unidade estatal e tal como os vietnamitas assumiram "escolhas difíceis" sobre os seus "conflitos internos" (eufemismo para a guerra contra a França entre 1945 e 1954 e para o posterior conflito com os Estados Unidos e os seus aliados anticomunistas) e abriram a economia ao exterior (a partir de 1986) também os povos da Mesopotâmia se seguirem o exemplo dos comunistas de Hanói terão "um futuro de paz e oportunidades".
À encomendação da "escolha difícil" da guerra sem quartel dos líderes comunistas do Vietname e das suas reformas económicas após anos de catástrofe por parte da antiga professor universitária de Stanford, seguiu-se a vez do chefe do governo australiano que veio negar a ocorrência qualquer desastre no Iraque.
Para John Howard é inverosímil falar em desastre pois a intervenção revelou-se apenas "mais difícil do que o esperado" e duas eleições, um referendo e o julgamento de Saddam são prova do "heroísmo" e "perseverança" dos iraquianos.
Num fim-de-semana em que a violência fazia mais de 150 mortos no Iraque as declarações de Bush, Blair e Howard parecem, pois, revelar incapacidade em reconhecer que a situação se caracteriza pela proliferação de poderes rivais locais e regionais de base clânica, tribal e étnica, bem como pela multiplicação de bandos criminosos armados, em consequência da dissolução do estado central dominado pelos sunitas na era de Saddam Hussein, e que nenhuma potência exterior está em condições de impor os termos de uma eventual partilha do país.
Constatar que o exército e as forças de segurança são permeáveis à acção de milícias desafectas ao governo central e reconhecer o fracasso do executivo de Bagdade em assegurar o mínimo de consenso entre partidos xiitas, curdos e sunitas, além de se mostrar incapaz de prover condições de segurança e serviços básicos de fornecimento de electricidade e água, cuidados de saúde e saneamento, é acto que tão pouco parece estar ao alcance dos actuais responsáveis em Washington, Londres e Camberra.
A pergunta que faziam a Baker
O paradoxo da presença militar estrangeira ser factor de conflito e, simultaneamente, único freio à guerra civil aberta e generalizada, condiciona qualquer iniciativa política e acabou por deixar os três políticos implicados no fracasso à espera das propostas que a comissão Baker-Hamilton venha a aventar para puderem alterar o rumo.
Henry Kissinger já opinou junto da comissão bipartidária que uma retirada precipitada destabilizaria por muito tempo a região, admitindo, no entanto, que o governo de Bagdade não conseguirá impor a curto prazo a sua autoridade a todo o país e controlar a violência sectária. Para velho estratego só uma grande conferência internacional, com participação obrigatória da Síria e do Irão poderá definir compromissos que permitam ultrapassar o impasse.
Da parte de Bush e de Howard, o compromisso para com um calendário de retirada faseada parece, no entanto, ser a atitude mais previsível ante as recomendações que o painel de notáveis e o grupo de análise do Pentágono venham a apresentar. A opção de reforço do actual contingente militar é, notoriamente, de difícil execução, de valia duvidosa e praticamente impossível de aceitar pelas opiniões públicas nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália.
Já Blair acalenta algumas esperanças de apoio à sua vaga "estratégia global" e à possível convocação de uma grande cimeira internacional à semelhança da Conferência de Madrid orquestrada por James Baker em Outubro de 1991 com a anuência de Gorbachev no rescaldo da Operação Escudo do Deserto que obrigou Saddam a retirar do Kuwait e garantiu a autonomia das regiões curdas na zona de exclusão no norte do Iraque.
Antes do mais, o presidente desconcertante e os dois primeiros-ministros equivocados terão, contudo, de atentar nas razões que levam James Baker a contar para quem o quer ouvir como, depois de anos passados a ser constantemente interrogado sobre as razões que o levaram a apoiar a decisão de Bush pai de não derrubar Saddam Hussein em 1991, acabou por chegar uma altura em que já ninguém via necessidade de lhe perguntar tal coisa.
Já ninguém pergunta ao antigo secretário de Estado o porquê de tão controversa decisão que tanto amargou aos xiitas. Ninguém o interpela sobre tal opção desde o final de 2003, meio ano depois de Bush filho ter proclamado o "fim de operações militares significativas" no Iraque a bordo do porta-aviões USS Abraham Lincoln com a faixa em fundo de "Missão Cumprida", quando os crescentes ataques de insurrectos e terroristas sunitas e xiitas vieram juntar-se ao caos dos primeiros meses da ocupação.