Opinião
Um populismo demagógico, primário e errado
Um dos destaques do debate na generalidade do Orçamento do Estado para 2007 (OE’2007), ocorrido há três semanas no Parlamento, foi o ataque sem precedentes que o Governo desferiu sobre o sector financeiro português.
Quer o primeiro-ministro, quer o ministro das Finanças, usando e abusando de um populismo absolutamente demagógico e primário, colaram os bancos nacionais a todos os que fogem ao fisco e não cumprem as suas obrigações fiscais, abalando a imagem não só do sector financeiro, como de todas as entidades de supervisão e auditoria que a ele estão ligados (entre as quais se encontra o Banco de Portugal, que foi, objectivamente, colocado em xeque). Ao mesmo tempo, apresentaram um conjunto de medidas que, umas mais, outras menos, aumentarão a carga fiscal sobre o sector bancário.
No espectro político português, os ataques ao sistema financeiro (e, sobretudo, aos bancos) por parte da esquerda mais radical tornaram-se já banais e creio que não são levados muito a sério por ninguém (a começar pelos próprios, cujo principal intuito é o de fazerem o "número político da praxe"?), Até porque se trata de partidos cuja entrada na governação do país é encarada como francamente remota.
O caso muda de figura, porém, quando assistimos a posturas semelhantes por parte quer do Governo, quer do partido que o apoia maioritariamente na Assembleia da República (o PS). É certo que todo este frenesim teve o seu epicentro na semana anterior à realização do Congresso do Partido Socialista - que, por acaso, também foi a do debate na generalidade do OE’2007. Para a população em geral, o debate na generalidade é o verdadeiro debate do Orçamento do Estado, já que o debate na especialidade - que se realiza amanhã e depois de amanhã -, com todas as propostas de alteração apresentadas pelos diferentes Grupos Parlamentares, e as votações de todo o articulado do OE (incluindo alíneas, "corpos" de artigos, etc.) acaba por ser muito pouco inteligível para a generalidade das pessoas (com excepção, naturalmente, dos Deputados que acompanham todo o processo orçamental). Ao mesmo tempo, convém lembrar que, mesmo dentro do PS, a governação do engenheiro Sócrates está longe de ser pacífica, ouvindo-se frequentemente a acusação de se estar a governar demasiado "à direita". Ora, numa semana que culminaria com a realização do congresso, nada melhor do que deixar transparecer uma (aparente?) viragem à esquerda para tranquilizar (mais) as hostes socialistas. Assim, com a diabolização da banca naquela semana específica, e o anúncio de medidas destinadas a tributar mais este sector, o Governo tentou "matar dois coelhos com uma só cajadada": desviar as atenções dos aspectos mais polémicos do OE’2007; tranquilizar os "bastidores".
Naturalmente, os ataques desferidos tiveram a correspondente resposta por parte da Associação Portuguesa de Bancos, tendo-se assistido, nos dias seguintes, a uma troca de galhardetes que não serviu a nenhuma das partes envolvidas – muito pelo contrário.
Creio, no entanto, que este ataque se baseou numa estratégia orçamental global que considero errada e que, para além disso, assenta em pressupostos falaciosos.
Começando por estes, creio que qualquer empresa cotada em bolsa cumprirá todas as suas obrigações legais – incluindo, naturalmente, as fiscais. Ora, a esmagadora maioria dos bancos portugueses encontra-se cotada no mercado de capitais, estando, como tal, sujeita a uma enorme visibilidade e atenção por parte de investidores e agências de rating – que, com toda a facilidade, penalizam quem seja classificado como prevaricador. Optimizam os bancos o seu planeamento fiscal? Com certeza que sim – mas dentro de toda a legalidade, supervisionados pelo Banco de Portugal e submetidos a auditorias regulares (tanto ou mais do que qualquer outro sector de actividade). E não seria esta optimização do planeamento fiscal o que todos os contribuintes deviam fazer, dentro de toda a legalidade?... Aproveitando todos os benefícios concedidos pela legislação em vigor?!... Quanto aos "altos" lucros deste sector, não creio que tê-los seja um crime – pelo contrário, ficaria era preocupado se a banca não apresentasse resultados positivos!...
E, já agora, deixo aqui uma estatística interessante: o sector financeiro pesa cerca de 6.5% na economia nacional; a banca (subconjunto mais importante do sector financeiro) pesa cerca de 5%. No entanto, mesmo pagando uma taxa efectiva de cerca de 18% (25% é a taxa nominal de IRC), a receita fiscal proporcionada pelo sector financeiro nos últimos 4 anos é de cerca de 8% do total da receita de IRC. E a da banca, de cerca de 6%. Ou seja, em ambos os casos, o peso das receitas fiscais é maior em cerca de 20% que o peso na economia. Não creio que existam muitos outros sectores de actividade que apresentem tal panorama?
Quanto à estratégia orçamental que considero errada, ela é a que este Governo tem vindo a praticar desde que tomou posse: mais e mais receita para fazer face a mais e mais despesa. Foi assim com o escandaloso Orçamento Rectificativo para 2005; continuou com o OE’2006 e assim será em 2007. A carga fiscal (impostos directos e indirectos) em Portugal já é mais elevada do que em países como a Alemanha, a Holanda, a Espanha, a Grécia ou a Irlanda (para só citar alguns) – uma situação que prejudica quem tem um menor nível de vida (como é, infelizmente, o nosso caso?), para além de estar a afectar o desempenho da nossa economia (como é reconhecido no recente Boletim de Outono do Banco de Portugal). Por outro lado, sabe-se que a fraude e a evasão fiscais são, em Portugal, das mais elevadas da Europa (a OCDE estima que mais de 20% do PIB escapa à tributação todos os anos; mais, só mesmo na Grécia e em Itália). Por isso, todas as medidas que venham ajudar a combater este flagelo são, naturalmente, muito bem-vindas – e é, pois, positivo que a receita fiscal cresça por esta via. O problema é que a receita fiscal tem vindo a crescer bem mais pela via do aumento dos impostos – que vai continuar em 2007. Ora, quando, dirigindo-se ao sector empresarial e, em particular ao sector financeiro, o Governo refere que quer aproximar as taxas de imposto efectivas (que são mais baixas) dos diferentes sectores de actividade, da taxa de imposto nominal (que é mais alta), está, na prática, a aumentar ainda mais a carga fiscal. Não devem existir regimes de excepção para quem quer que seja – sem dúvida. Mas não é disso que se trata.
A simplificação do nosso complicado sistema fiscal (que só facilita a fraude e a evasão) é desejável mas, se for feita à custa da redução e eliminação de deduções, benefícios e isenções, então acaba por resultar em mais um aumento da carga fiscal. Já seria, contudo, diferente se a eliminação de distorções deste género fosse compensada pela redução da taxa nominal, garantindo que não se perde receita. Aproximar-se-ia, assim, a taxa nominal das taxas efectivas – e não estas daquela, o que é muito diferente. Pela primeira via, a carga fiscal não é aumentada, e o sistema torna-se mais simples – logo, torna-se mais difícil fugir ao fisco. Pela segunda via, a competitividade das nossas empresas é agravada, o que tem, naturalmente, consequências reais (negativas) sobre a economia portuguesa.
O Governo escolheu trilhar o segundo caminho, pouco se importando com estes efeitos negativos, e a razão é só uma: a incapacidade que tem revelado para controlar e consolidar realmente a despesa pública. Porque, quase dois anos depois de ter iniciado funções, tem-se assistido a muitos anúncios – mas a muito pouca acção na prática, tendo-se perdido um tempo precioso para iniciar reformas que há muito já deveriam ter sido efectuadas na área da despesa pública (já muitas vezes tenho escrito sobre este tema, pelo que me dispenso de o aprofundar agora).
E assim são todos os contribuintes cumpridores, quer famílias, quer empresas que pagam – e cada vez mais, pois vêem as condições fiscais que enfrentam serem agravadas ano após ano.
É este o resultado de termos um Governo e um primeiro-ministro que não acreditam na competitividade fiscal – que, quer se queira quer não, é uma das vertentes que mais peso tem vindo a ganhar na competitividade geral e que não devia, portanto, ser esquecida (como está a ser).
Creio que qualquer responsável de qualquer empresa concordará com a aproximação da taxa nominal de tributação à taxa efectiva. Quer na banca, quer em qualquer outro sector de actividade. Já o inverso, isto é, a aproximação das taxas efectivas à taxa nominal, não significa outra coisa que não seja o aumento da carga fiscal. O que, do meu ponto de vista, é altamente condenável como continuada prática orçamental e mostra um fraquíssimo entendimento sobre o mundo competitivo em que nos inserimos.
Nota
Declaração de interesses: Para além das minhas funções de Deputado à Assembleia da República, em que sou Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PSD, continuo hoje a estar ligado profissionalmente ao Grupo Banco Espírito Santo, o que já acontece desde 1998, com a interrupção de um ano, que corresponde ao desempenho de funções governativas, entre Abril de 2002 e Abril de 2003. Considerei, porém, que este facto não deveria ser inibidor de expressar a minha opinião pessoal sobre o assunto que abordo neste artigo, porque mesmo que não estivesse ligado ao sector financeiro, defenderia exactamente o mesmo, e teria exactamente a mesma visão e a mesma linha de raciocínio que o leitor poderá encontrar nas linhas acima.