Opinião
Um imbróglio separatista no Cáucaso
Uma aparente excentricidade de vasto alcance político é definição que melhor abarca o referendo em que a pequeníssima república da Ossétia do Sul confirmou a sua reivindicação de independência face à Geórgia.
A maioria dos 55 mil residentes ossetas pronunciou-se pela independência, tal como em 1992, enquanto os cerca de 15 mil georgianos que habitam a região ignoraram a consulta e organizaram uma votação paralela em defesa da sua autonomia e, por extensão, da preservação dos vínculos administrativos com Tbilissi.
O objectivo do exercício, condenado pela Geórgia, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, o Conselho da Europa e os Estados Unidos, é, como confessa o presidente Edvard Kokoity a quem se desloca a Tskhinvali, a delapidada capital da região, criar condições para que pelo menos Moscovo venha a reconhecer a independência do território ou a incorporá-lo, eventualmente, na república russa da Ossétia do Norte.
O bizarro referendo osseta segue-se a idêntica iniciativa da Abkházia (250 mil habitantes) que a 18 de Outubro aprovou um pedido para que o parlamento de Moscovo "legitime a independência", aprovada num referendo ignorado pela comunidade internacional em 1999.
A reintegração da Ossétia do Sul, separada de facto de Tbilissi desde 1992, e da Abkházia, que em 1993 seguiu idêntico destino também sob a protecção de Moscovo, é um dos objectivos prosseguidos por Mikhail Saakashvili desde a sua eleição em 2004 e motivo de confronto com a Rússia.
Enquanto não for decidido o destino das duas repúblicas e dos 250 mil georgianos desalojados após os confrontos militares de 1992-1993 na Abkházia está fora de questão que a NATO possa vir a aprovar um pedido de adesão da Geórgia o que explica o apoio de Moscovo aos separatistas de Tskhinvali e Sukhumi.
Braço-de-ferro entre russos e georgianos
O risco de novos confrontos militares à semelhança dos ocorridos no início dos anos 90 durante a conturbada implosão da União Soviética aumenta à medida que se agrava o conflito entre a Rússia e a Geórgia, apesar dos recentes sinais de apaziguamento por parte de Tbilissi entre os quais se contam o afastamento do irredutível anti-russo Irakli Okruashvili da pasta da Defesa e o abandono das ameaças de veto à adesão da Rússia à Organização Mundial de Comércio.
Moscovo tem vindo a impor embargos sucessivos às exportações georgianos – vinhos, águas minerais, frutas –, suspendeu as ligações postais, marítimas, aéreas e terrestres, além de desencadear uma campanha sistemática de hostilização dos cerca de 500 mil georgianos residentes na Federação Russa.
A ameaça mais recente cifra-se no anunciado aumento do preço do gás natural fornecido pela Gazprom. O monopólio russo pretende aumentar no próximo ano a factura do gás natural comprado por Tbilissi de 110 dólares para 230 dólares por mil metros cúbicos. Tal como sucedeu no Inverno passado com a Ucrânia, a Gazprom propõe soluções de compromisso na condição da Geórgia ceder o controlo de parte da sua infra-estrutura de gasodutos à imagem do acordo que a empresa russa acaba de celebrar com a Arménia.
A demonstrar os contornos políticos da revisão de preços a Gazprom iniciou no final de Outubro a construção de um gasoduto de apenas 163 quilómetros de extensão para a partir da Ossétia do Norte fornecer combustível a preços subsidiados ao território da Ossétia do Sul, tal como sucede na república da Transdniestria onde os abastecimentos de gás russo ajudam a sustentar as aspirações separatistas frente à Moldova.
A reiterada chantagem energética sustenta, por sinal, as objecções dos governos, com Varsóvia à cabeça, que pretendem, contra a opinião da maioria dos parceiros comunitários, subordinar a revisão da "Parceira Estratégica entre a Rússia e a União Europeia" ao prévio respeito pelo "Acordo sobre a Carta de Energia", assinado em Lisboa em 1994, que contempla a abertura da infra-estrutura russa de gasodutos e oleodutos russa a empresas estrangeiras e o fim da posição monopolista da Gazprom.
O fim dos conflitos congelados
A estratégia russa de apoio às reivindicações separatistas na Moldova e na Geórgia, bem como o apoio à Arménia no conflito com o Arzebaijão sobre o enclave de Nagorno-Karbakh (situado em território azeri e dominado pelos arménios desde 1994) cumpre, assim, os objectivos tradicionais de controlo das redes de oleodutos e gasodutos e de oposição a eventuais fugas da órbita de influência política de Moscovo. No mínimo deve considerar-se até agora como uma estratégia muito bem sucedida.
A própria expressão consagrada pela linguagem diplomática que qualifica como "conflitos congelados" confrontos de teor distinto (população russófona versus estado moldovo na Transniestria, maiorias regionais étnicas contra estado georgiano na Abkházia e na Ossétia do Sul e guerras para imposição de territórios nacionais contínuos e etnicamente homogéneos entre os estados arménio e azeri) é sinal do êxito da estratégia de Moscovo.
Vladimir Putin criou no entanto uma situação paradoxal ao considerar que as negociações em curso em Viena sobre o estatuto do Kosovo deverão conduzir a um compromisso que implique o respeito por "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais.
O fito de Putin ao fazer estas declarações em Fevereiro era, aparentemente, continuar a garantir a conivência ocidental face ao apoio de Moscovo aos separatistas na Moldova e na Geórgia e, subsidiariamente, pressionar os governos da Estónia, Letónia e Lituânia quanto ao estatuto das minorias russas, enquanto excluía a Tchetchénia, alegando tratar-se de um caso de combate ao banditismo e ao terrorismo islamita.
O plano proposto pelas potências ocidentais e a Rússia para a província albanesa obrigará a criar instituições de segurança e judiciais sob supervisão externa, interdita a possibilidade de eventual confederação, federação ou integração com a Albânia e prevê a manutenção da integridade territorial do Kosovo de forma a obstar a um efeito dominó de partilha étnica na Macedónia e na Bósnia-Herzegovina.
No entanto, após um período de "soberania limitada" que dê provas de respeito pelos direitos da minoria sérvia, o Kosovo poderá aceder à independência e, em última análise, é este o argumento que alguns sectores radicais entre os separatistas abkházes e ossetas começam a brandir e a ameaça que uma larga facção dos nacionalistas georgianos mais teme.
O equívoco apoio de Moscovo a movimentos separatistas na Moldova e na Geórgia que reivindicam a independência em associação com a Rússia de territórios e populações cujo controlo é irrelevante de um ponto de vista económico e militar arrisca-se a agudizar os conflitos locais e inquina as relações com os estados ocidentais e os países vizinhos.
A fase bem sucedida da estratégia de "congelamento dos conflitos" na Moldova e na Geórgia pode assim estar perto de chegar ao fim sem que a Rússia tenha conseguido definir uma política de boa vizinhança com as ex-repúblicas soviéticas que, significativamente, Moscovo denomina como "estrangeiro próximo".