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08 de Junho de 2011 às 11:23

Um camaleão do Peru

Uma queda sem paralelo de 12,5% da bolsa de Lima e a intervenção do banco central para travar a maior desvalorização em dois anos da moeda nacional

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Uma queda sem paralelo de 12,5% da bolsa de Lima e a intervenção do banco central para travar a maior desvalorização em dois anos da moeda nacional, o sol, marcaram na segunda-feira a eleição de Ollanta Humala para presidente do Peru.

Humala arrebatou mais de 7 milhões de eleitores, triunfou em 19 das 24 províncias, e com 52% dos votos impôs-se a Keiko Fujimori, após quase meio ano de campanha.

Aos 48 anos, o presidente que trocou as camisas vermelhas pelos tons azul-celeste, é um enigma camaleónico.

Dos golpes ao lulismo
No final de 2000 o então tenente-coronel Ollanta e seu irmão Antauro lançaram um golpe contra Alberto Fujimori e foram expulsos do exército.

A queda em desgraça do presidente valeu-lhes, no entanto, uma amnistia do Congresso em Dezembro.

Antauro voltou a sublevar-se em Janeiro de 2005 contra Alejandro Toledo, o sucessor eleito de Fujimori, e veio a ser condenado a 25 anos de prisão.

Humala, adido militar em Seul, tinha acabado de passar compulsivamente à reserva e esquivou-se então a condenar o golpismo do irmão e a renegar a doutrina racista e nacionalista de seu pai Isaac que o inspirava desde a infância.

O patriarca Isaac, mestiço hispano-quechua, condena o Chile como maior inimigo histórico do Peru e é apologista da supremacia indigenista da chamada raça "cobriza" a quem caberia retomar o domínio do país usurpado aos incas pelos conquistadores espanhóis.

O venezuelano Hugo Chávez veio juntar-se à galeria de heróis de Humala quando o ex-militar concorreu às presidenciais em 2006 para ser derrotado na segunda volta por Alan García.

A redenção de García
O primeiro mandato presidencial de García, entre 1985 e 1990, deixara o país à beira da ruína e à mercê de todas as violências, com destaque letal para a guerrilha maoísta do "Sendero Luminoso".

García viria, contudo, a reabilitar-se na segunda passagem pela presidência e consolidou durante os últimos cinco anos as reformas iniciadas por Toledo.

Na última década o Peru brilhou na América Latina com um crescimento económico anual médio rondando os 5%.

A exploração mineira (o Peru é o segundo maior produtor mundial de prata e cobre e o sexto de ouro) foi o sustentáculo da expansão económica, contribuindo para 60% das receitas das exportações.

A SIDA, o cancro e o fascismo
Para as presidenciais deste ano Humala surgiria inicialmente como o candidato de todos os radicalismos nacionalistas e estatizantes de matriz esquerdista, mas, a pouco e pouco, modelou o discurso à imagem de uma alegada social-democracia ponderada ao estilo de Lula da Silva.

Na primeira volta em Abril a disputa entre três candidatos moderados acabou por abrir caminho ao triunfo de Humala com 32% dos votos seguido de Keiko Fujimori com 24%.

A votação da filha do ex-presidente que cumpre desde 2007 três penas de prisão, designadamente uma sentença de 25 anos por responsabilidade política em matanças de opositores, foi uma das grandes surpresas das presidenciais em Abril.

As eleições legislativas desse mês deixaram, por sua vez, o partido "Gana Peru" de Humala com 47 deputados, a "Fuerza 2011" de Keiko com 37, e o "Perú Posible" de Toledo, candidato presidencial derrotado, com 21 lugares entre os 130 mandatos no Congresso de Lima.

Um confronto entre Ollanta e Keiko era tido como um pesadelo improvável nos círculos liberais antes da votação de Abril.

O escritor Mario Vargas Llosa, candidato batido por Alberto Fujimori em 1990, declarava que se os seus compatriotas cometessem tal insensatez ver-se-iam ante uma opção entre a sida e o cancro.

Vargas Llosa viria, no entanto, a atalhar caminho e proclamar o seu apoio a Humala para "vencer o fascismo e salvar a democracia", enquanto Toledo e os seus alinhavam com o antigo rival.

A herança fatal de Keiko
Keiko viu-se apoiada pela Igreja Católica, a maior parte da burguesia e círculos empresariais, e todos os temerosos de uma recaída esquerdizante 36 anos depois do regime do general Juan Velazco Alvarado, inspirador de alguns militares revolucionários em Portugal no pós-25 de Abril.

Os conselheiros brasileiros do "Partido do Trabalhadores" enviados para Lima conseguiram, por seu turno, suavizar a imagem de Humala e nem o contributo do antigo "mayor" de Nova Iorque Rudy Giuliani, apresentado como assessor para o combate à criminalidade, ou do economista liberal Hernando Soto valeu a Keiko.

A jovem de 36 anos e licenciada em gestão de empresas nos Estados Unidos começou por se apresentar como uma candidata exemplar do dinamismo que sucessivas gerações de descendentes de imigrantes japoneses trouxeram ao Peru.

A campanha de Keiko veio a soçobrar por surgir demasiado ligada aos abusos da década da presidência Fujimori, apesar de paradoxalmente contar com apoios de liberais desprezados pelo antigo chefe de estado.

A presença de antigos colaboradores de Alberto Fujimori, em especial de responsáveis pelos programas de esterilização forçada de mais de 250 mil mulheres nos anos 90, foi fatal para Keiko que só se conseguiu impor em províncias da costa norte, na capital e na vizinha Callao.

Crescimento e desigualdade
Humala apresentou sucessivos programas económicos cada vez mais moderados, abandonou as referências a uma revisão constitucional para alargar poderes presidenciais e calou-se sobre projectos de nacionalização de aeroportos ou controlo das exportações de gás natural.

Sobrou a taxação a 40% dos lucros das empresas de mineração para financiar um aumento do salário mínimo e pensões sociais, enquanto o candidato prometia manter o modelo de desenvolvimento económico capitalista assente nas exportações.

A acentuada desigualdade social do Peru fez a balança pender para Humala que somou apoios nas regiões andinas e da selva do Amazonas, além das classes urbanas de menores rendimentos.

O rendimento per capita bruto aumentou 82% nos últimos cinco anos para cerca de 5200 dólares, mas perto de 30% da população peruana ainda subsiste na pobreza.

À maior parte das zonas rurais, onde vive cerca de 20% da população e se concentram os 12 milhões de peruanos em situação de pobreza extrema, de pouco têm valido os proventos das exportações de minérios.

Degradação ecológica e desperdício por parte das instituições estatais, em particular os governos regionais e locais que recebem 50% dos impostos sobre os lucros da mineração, têm provocado graves confrontos e alienado as populações.

Humala, segundo de sete filhos de um mestiço quechua de Ayacucho e de uma senhora de Lima de ascendência italiana, acabou por se revelar capaz de mobilizar o voto de quem ainda aguarda pelos despojos da expansão económica.

A alegada conversão de Humala a uma esquerda moderada à imagem de Lula, mas sem ostracizar os estados da "Alianza Bolivariana" e capaz de dialogar com os presidentes de direita do Chile ou da Colômbia, serviu-lhe, ainda, para captar os votos dos liberais temerosos de um retorno aos abusos da era Fujimori.

A capacidade camaleónica de se adaptar às cores mais propícias valeu a presidência a Humala, mas daqui para a frente terá de tomar opções que numa sociedade polarizada como a peruana não admitem meias-tintas.



Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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