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19 de Dezembro de 2007 às 13:59

Traz de volta a minha metralhadora

“Traz de volta a minha metralhadora. Não me contenhas!” Foi assim ao som de Umshini Wam, uma das canções da fúria na luta armada contra o apartheid, que Jacob Zoma humilhou Tabo Mbeki e ficou a um passo de ser eleito presidente do Congresso Nacional Afric

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Jacob Zuma é agora o homem-forte de destino incerto: tem pela frente a chefia do estado ou um controverso processo judicial que o poderá levar à cadeia.

Ao desfeitiar Mbeki numa das Conferências Nacionais mais tempestuosas nos 98 anos do movimento Zuma ficou imediatamente na linha da frente para vencer as eleições de 2009, liderando a coligação do ANC, do Partido Comunista e do Congresso dos Sindicatos da África do Sul (Cosatu) que governa o país deste a queda do apartheid em 1994.

Zuma, com um passado de luta clandestina desde a juventude, passando por dez anos de prisão em Robben Island ao lado de Nelson Mandela, foi eleito vice-presidente do ANC em Dezembro de 1997 e dois anos depois chegou a vice-presidente da África do Sul.

Os apoios de Zuma sempre foram de peso – chegou a chefiar os serviços de informação do movimento, um cargo de alta influência – e aumentaram significativamente graças ao papel desempenhado na pacificação da província do Kwazulu-Natal durante os confrontos entre o Inkhata e o ANC na década de 90.

À prova de escândalo

A demissão da vice-presidência do Estado em Junho de 2005 não o impediu de manter o cargo de direcção no ANC, ao mesmo tempo que dava voz aos grupos descontentes com a política dita centrista de Mbeki.

O escândalo de corrupção que justificou a demissão de Zuma, depois de um empresário de Durban e seu consultar financeiro ter sido condenado a 15 anos de prisão, valeu-lhe um processo judicial inconclusivo. A reabertura do processo este ano poderá, contudo, levar proximamente a um julgamento altamente comprometedor para Zuma.

Às alegações de corrupção, somou-se um julgamento por violação de que saiu ilibado em 2006. Num julgamento indecoroso, Zuma reconheceu ter praticado sexo com uma mulher que sabia ser vítima de SIDA sem usar qualquer protecção, mas explicou que depois tomara duche para evitar riscos de contágio. Zuma presidia na altura à Comissão Nacional da SIDA da África do Sul.
 
O comportamento confessado por Zuma foi apenas mais um caso deplorável entre outras desgraças da elite política em que sobressaem as atitudes de Mbeki que questiona a etilogia da SIDA, classificando-a como “doença da pobreza”, ou da ministra da Saúde Tshabalala-Msimang que continua a recomendar a beterraba e o alho para efeitos de prevenção enquanto a epidemia atinge mais de 5,5 milhões de sul-africanos.

As atribulações de Zuma e a sua fama homem de muitas influências e conivências, afora a aura de patriarca femeeiro, alegado pai aos 65 anos de 18 filhos fruto de três casamentos e diversas relações, não impediram que organizações do ANC como a Liga das Mulheres e a Liga da Juventude apoiassem a sua candidatura ao mesmo tempo que o Partido Comunista e o COSATU vislumbram nele o futuro “presidente a favor dos pobres”.

O presidente dos pobres

Até à sua demissão em 2005, Zuma nunca contestou a estratégia económica de Mbeki que abandonou o programa vindo da era de luta contra o apartheid, designadamente a nacionalização da banca e da indústria mineira ou a expropriação de explorações agrícolas nas mãos de empresários brancos que detêm 90 por cento das terras aráveis.

Jacob Zuma apresenta-se ante investidores e empresários sul-africanos e estrangeiros como um disciplinado seguidor das orientações estratégicas do ANC e de uma política que permitiu o maior crescimento económico da África do Sul desde a II Guerra Mundial.

A economia gigante do continente africano cresceu a uma média anual de 2,8 por cento a partir de 1994 e atingiu 5 por cento em 2005 e 5,4 por cento no ano passado. Uma era de crescimento possibilitou a diminuição do desemprego, que se cifra presentemente em 25,2 por cento, e a alocução de subsídios a cerca de 12 milhões de pessoas das camadas mais pobres. Apesar disso, mais de 40 por cento dos 48 milhões de sul-africanos subsistem com um euro por dia.

A emergência de uma classe empresarial negra, outro dos sinais de renovação pós-apartheid, não impediu, no entanto, que as estatísticas oficiais reconheçam um aumento da desigualdade social e racial, enquanto a quota na partilha dos diversos tipos de propriedade se queda pelos 12 por cento para os negros, conforme reconheceu Mbeki no seu discurso à Conferência Nacional de Polokwane.

O fracasso total do governo no combate à criminalidade é matéria que não deixa salvaguardas para qualquer sucessor de Mbeki e surge como um dos maiores óbices, a par do aumento da corrupção e da epidemia de SIDA, para o crescimento sustentado do país.

As últimas estatísticas da criminalidade revelam uma desumanidade assombrosa – 49 assassínios, 125 violações declaradas, 503 roubos violentos por dia – que devasta as comunidades negras, mas atemoriza, também, mestiços e brancos de maior poder económico para não dizer nada de putativos investidores estrangeiros.

Zuma, apesar da sua retórica populista, o oposto do circunspecto Mbeki, surge como o homem que tudo pode aos olhos de quem o quer, mas, de facto, a sua capacidade de manobra é limitada.

A África do Sul é já demasiado rica e complexa para enfrentar uma eventual investida à Mugabe, caso Zuma por aí enveredasse, ainda que, convém não esquecer, a possibilidade de uma sociedade se degradar em laivos de radicalismos diversos ser sempre capaz de surpreender.

A presidência ou os tribunais

A eleição de Zuma poderá contribuir para manter os equilíbrios entre as maiores comunidades negras dentro do ANC e facilitar a coexistência com o Inkhata no Kwazulu-Natal.

Zuma torna-se no primeiro zulu a presidir ao ANC desde os tempos de Albert Lutuli (presidente de 1950 a 1958 e Prémio Nobel da Paz em 1960), depois de uma série de líderes de origem xhosa como Oliver Tambo, Mandela e Mbeki.

O confronto entre Zuma e Mbeki torna praticamente impossível a coexistência de dois centros de poder, mas o novo líder poderá ter dificuldade em conseguir uma maioria parlamentar que leve à convocação de eleições antecipadas antes de ser eventualmente acusado de corrupção.

Se o impasse se mantiver durante quase ano e meio nem mesmo Cyril Ramaphosa, antigo líder sindicalista e secretário-geral do ANC, poderá vingar como candidato de compromisso porque, após ter perdido a corrida à liderança para Thabo Mebki em 1997, virou a agulha para uma carreira altamente lucrativa no mundo dos negócios.

No caso de Zuma não poder candidatar-se à presidência, a única alternativa é o actual secretário-geral do ANC, Kgalema Motlanthe, que surgiu na Conferência Nacional como um dos seus principais apoiantes.

Para a maioria que impôs a sua vontade no ANC, o triunfo de Zuma é um compromisso para a presidência da África do Sul se empenhar numa viragem à esquerda, mas para os meios de negócios a retórica populista é, por enquanto, mera promessa para iludir o pobre e política sem futuro.

Duas perspectivas diversas são menos que uma certeza e, passe a incerteza sobre os reais desígnios de Zuma, a sua eleição tão pouco dá conforto aos principais rivais do ANC.

Nem o Inkhata de Mangosuthu Buthelezi, com a sua base zulu, ou os Democratas Independentes na ala centro-esquerda, sob a liderança de Patricia de Lille, ou sequer os liberais da Aliança Democrática de Helen Zille, presidente da câmara da Cidade do Cabo, estão em condições de retirar a maioria de dois terços que tem vindo a caber ao ANC e aos seus aliados.

Jacob Zuma cultiva um discurso populista, tem uma vida pessoal complicadíssima, é tão irresponsável quanto Mbeki no combate à epidemia de SIDA, ignoto na mediação da crise do Zimbabué, e não se sabe o que será o seu futuro.

A Zuma pode sorrir a presidência, se não se perder numa nova guerra nos tribunais com sério risco de prisão.

Certo é que a grande potência africana acaba de entrar num período de imensa instabilidade e que o triunfo de Zuma traz consigo a promessa arriscada de uma nova dinâmica política capaz de comprometer todas as esperanças de afirmação do país que prometia consagrar a sua respeitabilidade na realização do Mundial de Futebol de 2010.

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