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12 de Julho de 2006 às 13:59

Putin: parceiro incontornável

O anúncio oficial da abertura de negociações entre Washington e Moscovo sobre um acordo de cooperação nuclear civil vai consagrar este fim-de-semana o estatuto da Rússia como parceiro estratégico incontornável dos Estados Unidos.

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A concessão de fundo de George Bush baseia-se num cálculo realista de que o sistema autocrático criado por Vladimir Putin atingiu um nível de estabilidade e independência económica e financeira que inviabiliza os anseios dos círculos neoconservadores de Washington de cercearem e enclausurarem a Rússia numa esfera de influência cada vez mais limitada. 

Ainda que os benefícios políticos que Bush venha a recolher a curto prazo da acomodação com Putin sejam bastante limitados e as áreas de fricção entre as duas potências tenham tendência a aumentar, a Casa Branca acaba por reconhecer a impossibilidade de jogar em muitos tabuleiros descartando os interesses de Moscovo.                                          
                    
Um acordo vantajoso

Um eventual acordo dará a Moscovo a oportunidade que visa desde meados dos anos noventa de importar, armazenar e reprocessar resíduos radioactivos provenientes de reactores abastecidos pelos Estados Unidos, um mercado internacional potencialmente estimado em cerca de 20 mil milhões de dólares.

Independentemente dos investimentos necessários para obviar às deficiências de segurança das centrais e depósitos nucleares russos, um acordo de cooperação nuclear civil poderá, antes do fim desta década, permitir ao governo de Moscovo concretizar o objectivo estabelecido pela legislação aprovada em Julho de 2001 de converter o país no maior depositário e reprocessador de lixo nuclear.

A Rússia estima ter capacidade para armazenar e reprocessar cerca de dez por cento do combustível nuclear irradiado numa década a nível mundial, rondando a 20 mil toneladas, independentemente das críticas sobre eventuais impactes ambientais perniciosos e da oposição manifestada pela maioria dos inquiridos em estudos de opinião conduzidos por institutos russos. 

Um acordo nuclear civil tem, ainda, interesse acrescido para a Rússia na medida em que permitirá a Moscovo negociar novos contratos para venda de urânio enriquecido destinado ao mercado norte-americano. Aqui entra em consideração o facto de expirar em 2013 o programa, no montante de 12 mil milhões de dólares, assinado entre os dois países em 1993, para converter 500 toneladas de urânio altamente enriquecido dos antigos arsenais soviéticos em urânio mais pobre destinado a venda em centrais civis norte-americanas.

A Casa Branca e o Kremlin têm, igualmente, aventado planos para a criação de centros de processamento de combustível para fornecimento a programas nucleares civis de países terceiros. Um entendimento russo-americano nesta matéria é conforme à estratégia conjunta dos países do G8 para promoção da energia nuclear como alternativa à dependência dos hidrocarbonetos.

As propostas avançadas de forma independente por Moscovo e Washington têm em comum a preocupação em garantir a recuperação de resíduos para evitar riscos de desvio para fins militares. De um centro de enriquecimento de urânio para fornecimento a países membros da Agência Internacional de Energia Atómica, ao depósito e reprocessamento de combustível irradiado, passando por unidades internacionais de pesquisa e desenvolvimento para a indústria nuclear civil várias propostas russas são compatíveis com os objectivos estratégicos dos Estados Unidos no sector.

A Parceria Global para a Energia Nuclear proposta pela Casa Branca, em Fevereiro, visa, precisamente, criar um consórcio internacional para reprocessamento de combustível irradiado de forma a permitir a utilização de plutónio para civis exclusivamente civis.

Se Bush relançou o debate sobre a construção de novas centrais nucleares nos Estados Unidos, suspensa desde o início dos anos setenta, Putin, por seu turno, pretende aumentar a produção de electricidade com recurso ao nuclear dos actuais 16 por cento para 25 por cento até 2020. 

Há, portanto, um leque bastante alargado de interesses comuns aos dois estados para justificar um futuro acordo de cooperação nuclear civil. Putin poderá apresentar esta nova vertente de cooperação bilateral com os Estados Unidos como uma componente essencial da questão da segurança energética sem que Moscovo se veja obrigada a fazer cedências no sector do gás conformes às aspirações da União Europeia de criação de «um mercado energético seguro e estável e condições de concorrência equitativas».
                                
Vagas vantagens políticas

A abertura de Washington visa, ainda, como objectivo político imediato assegurar o apoio russo para conter o programa militar nuclear iraniano e, subsidiariamente, a intratável crise coreana.

Moscovo aceitou atrasar os trabalhos para completar a central nuclear de Busher (um contrato de 800 milhões de dólares) e limitará os fornecimentos a Teerão dos sistemas móveis de mísseis antiaéreos Thor-M1, além da venda de mísseis S-300, em concessão à abertura de Washington.

A imposição de sanções económicas ao Irão continua, no entanto, a ser recusada por Moscovo que recusa ser arrastada para uma dinâmica que considera semelhante à criada pela administração Bush para justificar a intervenção militar no Iraque, com o risco acrescido de pôr em causa os interesses estratégicos russos no Cáucaso e no Mar Cáspio se o arrastamento do Azerbaijão vier a juntar-se à deriva da Geórgia para a esfera de influência ocidental.

Na frente norte-coreana a Rússia apoia a China na recusa de imposição de sanções e tal como Pequim – a única potência com real capacidade de influência em Pyongyang – teme, sobretudo, a implosão do estado de Kim Jong Il e a perspectiva de afirmação militar japonesa na Ásia Oriental.
 
As concessões que os Estados Unidos consigam de Moscovo a curto prazo são assim muito limitadas. A Rússia tem, ainda, como interesse mais imediato renegociar os termos do acordo START I, que limita os arsenais nucleares russos e norte-americanos a 6000 ogivas e cuja vigência expira no final de 2009, para evitar, dada a denúncia em 2002 do Tratado de Mísseis Anti-Balísticos por parte de Washington, o agravamento do actual desequilíbrio estratégico.

A nível global a influência estratégica recém-adquirida pela Rússia graças essencialmente ao boom nas exportações de gás natural e petróleo e ao êxito de Putin na centralização autocrática do poder económico e político será confirmada na cimeira de S. Petersburgo.

Um parceiro difícil       

A Rússia impõe-se como parceiro estratégico independentemente dos conflitos sobre o estatuto da Transdniestria, da Abkházia e da Ossétia do Sul, do apoio à Belarus e aos regimes ditatoriais da Ásia Central, das disputas sobre fornecimentos de gás e da oposição declarada à eventual adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO.

A questão de pressionar no sentido de reformas democráticas o regime autocrático putinista deixa, assim, de ser pôr, desfazendo-se a ilusão de que Moscovo pudesse ser integrada num sistema sob tutela estratégica dos Estados Unidos que levou Bush Pai e Bill Clinton a trazerem a periclitante Rússia de Ieltsin para o então G7.

A recuperação do estatuto de potência não esconde, no entanto, as limitações do modelo de desenvolvimento putinista dado que, apesar de nos últimos oito anos a população abaixo do nível de subsistência (estimado em 2 dólares/dia) ter diminuído para metade, um em cada 5 russos ainda pena em situação de pobreza absoluta.

Este défice social explica a apelo de Putin para a adopção urgente de políticas capazes de conterem o colapso demográfico iniciado no período soviético, nos anos sessenta, com o aumento da mortalidade. Até 2008 a Rússia continuará a perder 600 mil pessoas por ano e as projecções apontam para que a população se reduza dos actuais 143,4 milhões para 101,5 milhões em 2050, comprometendo o actual modelo de desenvolvimento.

O sistema putinista assente nas exportações de hidrocarbonetos sob controlo estatal, associadas à chamada «ditadura da lei» imposta pelo Kremlin, garantiu a recuperação económica e financeira, mas ainda está a dar os primeiros passos no sentido de definir uma estratégia de desenvolvimento compatível com o objectivo de recuperar o estatuto perdido de superpotência. A cimeira de S. Petersburgo consagrará, ainda assim, Putin num dos seus momentos de glória.

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