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Portugal visto do meu bairro

Estou satisfeito por o lugar de presidente da Comissão Europeia ser ocupado por um português. Só que preferia outro e mais capaz.

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No bairro onde vivo, em Alvalade, cabe Portugal inteiro. Diverso na sua composição social, fervilhante de comércio e de actividade humana, é porventura o melhor retrato das virtudes, dos defeitos e dos tiques da sociedade portuguesa. Do ordenamento comercial à malha boticária, dos serviços públicos aos parques de estacionamento, da imigração aos usos e costumes dos portugueses, Alvalade dispõe de uma gama completa de cromos e atitudes lusitanas.

Comecemos pelas virtudes. É um bairro cuja concepção, típica dos anos cinquenta, conseguiu aliar habitabilidade, sobriedade arquitectónica e actividade mercantil, num rendilhado intenso de trocas e relações pessoais. As incontáveis mercearias, talhos ou padarias – entre dezenas de outros ramos e mesteres – prestam serviços personalizados, entregam ao domicílio e cuidam da relação pessoal com os clientes, sobretudo desde que a Lidl se instalou em força nas suas barbas e logo colada ao Mercado de Alvalade.

A estória recente da instalação da cadeia de hard discount no coração do bairro é, na verdade, bem ilustrativa dos conceitos de aliança estratégica e de confluência de interesses entre a Lidl, o Mercado e a autarquia lisboeta. Os primeiros querem instalar-se em zonas residenciais da cidade, mas faltam espaços e boa-vontade do comércio tradicional. Os vendedores da praça querem mais clientes, e vêem com bons olhos o chamariz da cadeia alemã, desde que não concorra com os seus produtos. A câmara quer contrapartidas pela cedência do terreno circundante ao Mercado e a garantia de paz social com as vendedeiras de peixe e legumes. O equilíbrio está encontrado: a Lidl constrói um pavilhão, com ligação directa à praça, a Câmara manda pintar o Mercado, as bancas de peixe rejubilam. O pequeno comércio rival das cercanias torce o nariz, mas acaba por se adaptar. Foge da concorrência directa com as marcas brancas da Lidl, diferencia a gama de produtos e melhora o serviço ao cliente. Sobreviverá, pela certa. Nós, consumidores, não poderíamos estar mais contentes.

Igual motivo de felicidade é a nossa condição geográfica privilegiada no tocante a farmácias. Nos trezentos e tal metros da metade leste da avenida da Igreja existem, nada mais nada menos, do que seis. É seguramente a maior concentração de farmácias por metro quadrado do país, talvez mesmo do mundo inteiro. Concorrem saudavelmente entre si, melhorando a qualidade do atendimento, renovando os layouts, as montras e as gamas de produtos para-farmacêuticos e de perfumaria. Não são conhecidas dificuldades económicas a nenhuma delas nem se antevê qualquer mudança de ramo. Palavras para quê?

O preço a pagar por todas estas comodidades é elevado e radica num único factor – o automóvel. Dele emanamos grandes problemas com que o bairro se confronta. É a penúria de lugares de estacionamento para residentes e visitantes, a invasão de carros e camiões durante o horário comercial, o estacionamento em terceira fila, as indefinições na política de construção de parques subterrâneos, as investidas diárias de bandos especializados no esvaziamento, sem dor nem alarido, dos obsoletos parcómetros da EMEL. A última tentativa para se encontrar uma solução para o imbróglio do parqueamento – a construção de um parque subterrâneo na avenida da Igreja – esbarrou com a oposição «política» dos comerciantes. «Nem mais uma obra! Cada dia de buracos representa um rombo terrível na caixa!», pensaram e acordaram os mercadores entre si. Atentos aos truques da política, souberam agitar e vencer uma campanha em prol da preservação das árvores, alegadamente em risco com a putativa obra da Bragaparques. Muito bem, teremos as mesmas árvores e o mesmo inferno.

O que ouço dizer no bairro sobre a ida de Durão Barroso para Bruxelas são coisas simples, comentários de quem certamente vive com maior intensidade a política da freguesia do que as jogadas da corte. Diz-se que Durão decidiu unicamente em função dos seus interesses pessoais e que agora é melhor haver eleições. Eu, que também pertenço ao bairro, estou satisfeito por o lugar de presidente da Comissão Europeia ser ocupado por um português. Só que preferia outro e mais capaz. Não me sinto especialmente feliz pela escolha, sobretudo sabendo-se que Barroso foi a sexta opção. Os cinco primeiros declinaram em nome de compromissos nacionais, só Durão aceitou. Os meus vizinhos não gostaram e querem ter uma palavra a dizer sobre o futuro de Portugal. Caso contrário, dizem que nunca mais votam.

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