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05 de Novembro de 2004 às 13:59

PCP: a questão em aberto

A entrevista de Domingos Lopes ao jornal «A Capital» [1 Novembro 2004] possui medíocre interesse. No entanto, permite que discreteemos um pouco acerca do seu conteúdo.

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Antigo alto dirigente do PCP, com responsabilidades importantes no sector internacional, ele sabia (e não apenas a partir de «certa altura») que o futuro do partido não era, somente, uma questão de estatística, um cálculo filosófico de riscos e de previsões, um problema resolúvel com a substituição de líderes.

O PCP, como todos os partidos comunistas, é uma organização de «tipo novo», como teorizou Lenine, baseada num sistema de controlo no qual a representação ou participação individual é anulada, em favor do colectivo. Sabe-se que a discussão nas células, e as indicações que delas emanam em pouco ou nada modificam as resoluções do Comité Central, determinadas por um pequeno grupo dirigente. É, pois, ilusório admitir-se que um novo líder do PCP alterará a estrutura interna da organização, a não ser que se deseje um «outro» partido, que nada terá a ver com a sua génese.

Tal como é, o PCP condena-se ao progressivo definhamento; por outro lado, modificando as suas estruturas internas, «modernizando-se», como dizem os seus inimigos, abandona o que explica e tem justificado a sua existência. Uma situação dilemática. Há anos, num lúcido artigo publicado n’«o diário», Miguel Urbano Rodrigues reconhecia que a expressão «comunista» poderia, eventualmente, ser substituída por outras enunciações, correspondentes a movimentos e formações políticos e sociais, produzidos pelas necessidades da história e pela força reactiva que as injustiças procriam.

Domingos Lopes não se deteve (também não lhe foi perguntado) sobre a urgência de se redefinir o projecto comunista, no momento em que sentimos o esgotamento do Estado-providência, em que a repartição é cada vez mais injusta, em que o capitalismo atingiu o estádio mais agressivo até hoje conhecido, em que os fundamentalismos recrudescem. Por outro lado, penso não ser intelectualmente sério atribuir-se à Imprensa a responsabilidade de a mensagem do PCP «não passar». É a linguagem, o discurso do partido que paralisou, que se não reinventa, que deixou de se reinterpretar, e se inclina para uma preferência particularista, sem a conseguir transformar em cultura. A linguagem é o universo constitutivo do projecto, ensinou Barthes. O projecto está ancorado no século passado, a sociedade mudou, e foi pouco estudado o papel dos novos intervenientes socio-económicos, culturais e ideológicos.

Creio ser significativo o facto de o PCP, que dispôs dos maiores nomes da inteligência portuguesa, nos vários domínios das ciências, da arte, da literatura, do jornalismo, do teatro, do cinema, tê-los perdido, ocasionalmente sem honra nem grandeza. As formas de reivindicação de uma identidade provêm daqueles que, amiúde, foram confrontados com a indiferença e, até, com a hostilidade de aparatchiks, cuja mediocridade tinha a dimensão dos seus ressentimentos e rancores. Nesse equilíbrio absurdo entre a estupidez e o preconceito se consumiram anseios, paixões e esperanças. Até ao desencanto e ao desespero. A estupidez é uma deficiência mental. O preconceito é uma deficiência cultural.

O PCP deixou de discutir os problemas decorrentes do domínio social e cultural de uma classe sobre as outras. A actual margem de interpretação despreza o que Álvaro Cunhal chamou «as diferenças compatíveis». Uma imprecisão acentuada pela cultura anti-PS, e reciprocamente estabelecida por uma cultura anti-PCP, até hoje incrementadas pelos dois partidos. A negação insensata dessa possibilidade histórica comportou o desacordo suicida, criador dos mais incómodos mecanismos de intolerância.

Bem gostaria de saber o que pensa Manuel Gusmão, uma das últimas grandes figuras intelectuais do PCP, acerca do que a crise no interior do partido pode, indirecta e directamente, atingir muitos portugueses. Ele não é um poeta maior, como se nos quer fazer crer: é um poeta estimável; vemo-lo, sobretudo, como um homem superior, antagonista dos estereótipos e dos encantamentos da «mediatização». Seria óptimo ouvi-lo. Porque o que disse Domingos Lopes é lacunar e insuficiente.

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