Opinião
Para que serve o Orçamento do Estado?
O OE, muito mais que um documento de política económica, permanece um jogo com as percepções dos eleitores, destinado a conseguir o melhor ajustamento possível entre estas e o ciclo político.
O debate do OE, tal como está consagrado entre nós, corresponde essencialmente a um ritual parlamentar, em que se testam as coligações ou as maiorias, mas onde pouco ou nada se discutem estratégias e opções de política económica. As que aí são apresentadas reduzem-se a um rol de declarações de intenções, acompanhadas de enunciados genéricos de medidas que através dos tempos foram ganhando um irreprimível ar de “déjà vu”.
Este tipo de debate, que se foi ritualizando ao longo de quase trinta anos de democracia, não tem espaço para questões como a estratégia de integração na Europa alargada ou os programas de grandes investimentos públicos. Quanto a estes, temos de contentar-nos com as frequentes, mas inconclusivas (quando não contraditórias), referências à presença ou ausência do novo aeroporto de Lisboa ou do TGV em diversas localizações, ou com a recente afirmação da ministra das Finanças a propósito do programa de investimentos proposto pela Presidência italiana, referindo que, para nele participarmos, teríamos de abdicar de outros investimentos. Quais os méritos relativos de uns e de outros e qual o peso daquele programa no défice orçamental foram matérias que não mereceram esclarecimento.
A obscuridade que rodeia a estratégia da política económica nacional, acantonada no objectivo cada vez mais insuficiente de cumprimento do Pacto de Estabilidade, não impede que nos apercebamos de que, tanto por razões económicas como ambientais, a Europa tem de criar alternativas ao transporte rodoviário e que precisa de acrescer a sua capacidade portuária. O desenvolvimento de infra-estruturas nestes domínios pode minorar o carácter periférico da economia portuguesa e seria importante ver discutir estes temas na sede da política orçamental que, em última análise, terá que acolhê-los: ou para financiar esses projectos, ou para procurar resposta para o acentuar dos custos da periferia.
As quase 400 páginas das GOP ignoram, no entanto, estes pontos. Organizadas em torno de quatro opções genéricas, passam imediatamente à enumeração de intermináveis listas de medidas, onde tanto cabe “a elaboração de um estudo estratégico que sustente um debate profundo e eficaz sobre um novo quadro legal do sector portuário” como “as obras de reabilitação e melhoria do Palácio das Necessidades”. A maior parte destas medidas renascem, aliás, ano após ano, e mesmo governo após governo, sem concretização de metas a atingir, de prazos ou de custos e, mais ainda, sem serem enquadradas por uma estratégia que lhes dê sentido e comprometa o governo e os serviços.
A primeira consequência directa desta opção é a programação dos gastos orçamentais em base puramente incremental, apenas modulada pela maior ou menor proximidade de períodos eleitorais. A segunda consiste na avaliação das políticas apenas em termos dos recursos atribuídos a cada sector e não dos resultados alcançados.
Talvez como resposta a este tipo de críticas, há anos que os Orçamentos do Estado anunciam a intenção de desagregar as despesas em programas plurianuais. O que se esperaria, relativamente à plurianualidade, seria a discussão de um cenário macroeconómico sério que levasse à fixação de limites plurianuais ao total dos gastos públicos e aos gastos por área de despesa. Pondo fim à orçamentação incremental, apenas entrecortada de travagens em períodos de crise, essa definição de limites permitiria aos serviços ajustarem-se ao financiamento disponível e ajudaria a responsabilizá-los por esse ajustamento. De outro modo, basta-lhes esperar pela próxima expansão ou continuar a desorçamentar, nas áreas em que isso é possível.
Quanto aos programas, esperar-se-ia a concretização de metas a atingir em prazos definidos. Na verdade, o que os programas este ano apresentados contêm é tão só a previsão das verbas globais para os anos seguintes, o que, a generalizar-se (como é a intenção afirmada no orçamento), apenas constituirá uma forma adicional de rigidificar as despesas públicas, cujos resultados já foram testados noutros países há mais de vinte anos e que foi, por isso, abandonada.
Em suma: o OE, muito mais que um documento de política económica, permanece um jogo com as percepções dos eleitores, destinado a conseguir o melhor ajustamento possível entre estas e o ciclo político e ignorando que muitas das decisões nele consignadas, ou dele dependentes, afectam significativamente a evolução da economia e a distribuição do bem-estar entre os cidadãos, por um prazo que excede largamente a vigência do documento anualmente aprovado.