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18 de Outubro de 2005 às 13:59

Os testes do OE 2006

Em trinta anos de democracia, nunca a opinião pública se preocupou com o cumprimento dos orçamentos, nem sequer o Parlamento que os ia aprovando. O interesse mediático do processo tendia a reduzir-se aos artifícios políticos necessários para o fazer passa

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Muito se tem afirmado nos últimos dias que o OE 2006 é um teste decisivo ao governo e que, se este não conseguir cumpri-lo, deverá ser «despedido». Há que reconhecer que tal constitui, em primeiro lugar, um excelente sinal quanto ao próprio orçamento. Em trinta anos de democracia, nunca a opinião pública se preocupou com o cumprimento dos orçamentos, nem sequer o Parlamento que os ia aprovando. O interesse mediático do processo tendia a reduzir-se aos artifícios políticos necessários para o fazer passar. Desde a entrada em cena do PEC, as atenções viraram-se para o cumprimento do défice, mas rapidamente se deram por satisfeitas com a acumular de artifícios - agora contabilísticos - que agravaram, em vez de resolver, os problemas orçamentais. Este ano, pela primeira vez, as coisas mudaram. Aquilo a que estamos a assistir não é, porém, um simples exame ao governo, que facilmente se substituirá por outro. É sim um teste sério à sociedade portuguesa.

No pós 25 de Abril, mas sobretudo na sequência da adesão à UE, Portugal podia ter optado por uma verdadeira abertura ao exterior e pelo estímulo à concorrência no mercado interno, acompanhadas de uma rede de segurança social compatível com o rendimento gerado no país e fundamentalmente destinada a proteger os elementos mais frágeis da sociedade. Na prática, porém, optou por proteger da concorrência todas as actividades em que tal foi possível e por, no sector público, instituir aquilo que Vital Moreira muito bem denominou de «feudalismo de Estado» , caracterizado pela criação de «corpos especiais», dotados de privilégios desligados de quaisquer critérios de eficiência ou desempenho e com custos incomportáveis para as finanças públicas.

Quanto à protecção aos mais fracos, foi, na prática, usada, em primeiro lugar, para alimentar os regimes especiais. Estes beneficiaram da prioridade atribuída às despesas públicas em áreas como a educação, a saúde, a justiça ou a segurança, e à ausência de uma restrição orçamental activa que um processo orçamental defeituoso transformou na consequência inevitável dessa prioridade.

Em segundo lugar, no plano laboral, levou à rigidez das leis que protegem os trabalhadores do sector público, ao mesmo tempo que, no privado, antes da moeda única, a flexibilidade dos salários reais proporcionava o contraponto necessário para manter a competitividade da economia. Depois da moeda única, a flexibilidade reduziu-se à que resulta das falências e dissoluções de empresas, enquanto, no sector público, a rigidez permaneceu intacta. No privado, por seu turno, continuou a insistir-se numa ineficaz protecção contra os despedimentos cujos resultados práticos consistem em dificultar a vida das empresas que procuram manter-se competitivas, tornando o país cada vez menos atractivo como destino de investimento e, desse modo, alimentando o desemprego. Entretanto, a formação profissional foi, em demasiados casos, usada como uma simples fonte adicional de rendimento, agravando a prazo os problemas das empresas e dos trabalhadores, num contexto de concorrência internacional cada vez mais aberta.

Finalmente, em termos de ordenamento do território, a protecção aos mais fracos levou a acrescer as despesas de uma administração local atomizada e destituída de capacidade e de regras de gestão eficazes e apenas dependente da sua força reivindicativa face ao poder central.

Os actuais problemas orçamentais resultam de tudo isto e só podem resolver-se com um grande esforço em matéria de governação económica e de capacidade de gestão, pública e privada. Estas duas condições implicam, por sua vez, flexibilidade e autonomia, dois termos muito gastos, mas que poucos se têm mostrado dispostos a levar à prática. Capturar o Estado revelou-se até aqui muito mais rentável do que contribuir para a sua boa gestão. Mas revelou-se também muito mais injusto e impeditivo do crescimento da economia. Só a margem de manobra orçamental que existia à partida e as oportunidades que a integração europeia mais tarde proporcionou permitiram ocultar as fragilidades que a economia e a sociedade portuguesa iam acumulando. Desbaratados esses factores, só nos resta mudar de rumo.

Isso é precisamente o que o Orçamento do Estado para 2006 procura fazer, na sequência da política que o governo tem vindo a pôr em prática desde que iniciou funções. Se não o conseguir, o falhanço do governo será o menor dos nossos problemas. O verdadeiro problema será o falhanço de uma sociedade ou, mais propriamente, de élites, que, parafraseando Fernando Pessoa, depois da Índia descoberta não ficaram sem trabalho, mas julgaram que já não tinham de se esforçar mais, bastando-lhes colher os frutos, fossem eles das descobertas ou da integração europeia. Quando estes se esgotam, transferem-se os sacrifícios para os que nada têm. Essa foi a sociedade em que nasci e não é a ela que quero voltar.

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