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19 de Dezembro de 2008 às 13:00

Os sapatos de al-Zaidi

O jornalista iraquiano Muntadar al-Zaidi não será um herói; mas é um homem de coragem, e George W. Bush não passa de um sinistro criminoso de guerra, que ficará impune à Justiça, nunca no tribunal da consciência dos homens honrados.

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O jornalista iraquiano Muntadar al-Zaidi não será um herói; mas é um homem de coragem, e George W. Bush não passa de um sinistro criminoso de guerra, que ficará impune à Justiça, nunca no tribunal da consciência dos homens honrados. E o arremesso dos sapatos marcará não só o instante do protesto como um capítulo na história da indignação. É de salientar que o "Wall Street Journal", a bíblia do capitalismo, fez um surpreendente elogio à sapatada: "Parabéns, Iraque: agora, sim, és um país realmente livre." No mesmo dia em que Dick Cheney, vice-presidente dos Estados Unidos, afirmou concordar com a tortura como método de obtenção de informações, e insistiu em que a prisão de Guantánamo deverá manter-se.

Esta teoria da violência é assim justificada pelo número dois da administração Bush: "Os EUA sempre exerceram o seu direito de capturar o inimigo e detê-lo até final do conflito. Foi isso que fizemos na II Guerra Mundial, quando mantivemos dezenas de milhares de prisioneiros alemães. O que estamos agora a fazer é aplicar esse mesmo princípio básico." A comparação é um absurdo; mas não deixa de reflectir a mentalidade doentia de um homem de quem o planeta também dependeu.

Este indivíduo, tal como Bush e Donald Rumsfeld, é responsável por algumas das mais arrepiantes atrocidades cometidas por um país democrático, após a II Guerra. A prática de tortura, discriminação religiosa e racismo de que é, também, moralmente responsável, estabelece um trágico desequilíbrio na justiça internacional, entre uns e outros, registando-se uma escala de valores entre os culpados. Estamos no domínio do mais abjecto paradoxo, que recupera o acento tónico da tragédia grega, interpretada por imbecis e por trafulhas. Os duzentos advogados que imediatamente se propuseram defender Muntadar al-Zaidi expressam, não só pelo número, mas pela prontidão, os sentimentos de repulsa que Bush suscita. A invasão do Iraque, com o seu medonho cortejo de mortes e de estropiados, fez mais pelo ódio aos americanos do que todas as selvajarias por eles anteriormente empreendidas, um pouco por todo o mundo.

"Não estava preparado para a guerra", confessou Bush. Se política, social, cultural e ideologicamente o presidente americano que vai embora é uma fraude, humanamente é desprezível. Fraude - digo e repito. As duas eleições que o levaram ao poder caracterizaram-se por embustes cuidadosa e preciosamente montados. A teia reticular de interesses, que conduziu Bush ao lugar de "dono do mundo", é uma sórdida aliança entre os grandes monopólios, a indústria armamentista e os generais do Pentágono. Para esta gente, a vida humana não possui valor. Sobretudo se for a vida humana dos outros.

Entra, nesta jogada infernal, o racismo e a religião. São chamadas a primeiro plano as forças mais retrógradas. Para se conferir ao quadro a imponência da razão, são utilizadas, em todo o mundo, pessoas de certa notoriedade, entre as quais políticos e jornalistas conhecidos pelo seu anticomunismo protozoário e pela cega devoção aos Estados Unidos. A infâmia atingiu contornos raramente vistos.

Todos assistimos à Cimeira dos Açores, prefácio à carnificina no Iraque. Bush, Blair (recém-convertido ao catolicismo) e Aznar combinaram o tempo e o modo de agir. Cá fora, tomando paulatinamente um café, o pobre do Durão Barroso, que interpretou, à letra e perfeitamente, o papel de mordomo. É uma das cenas mais vergonhosas a que os portugueses foram submetidos. Apesar dos protestos desesperados de muita gente, independentemente de se gritar que não havia armas de destruição maciça, a invasão contrariou as advertências e todas as regras do direito internacional.

Possuo muitos recortes de artigos publicados na Imprensa portuguesa. Para escarmento desses preopinantes, que não hesitaram, um segundo sequer, em denegrir e, até, em caluniar quem professou opiniões divergentes, seguiram-se as terríveis cenas em Abu Ghraib. "Disseram que nos divertíssemos", desculpou-se um soldado norte-americano. Nem Bush, nem Blair, nem Aznar comentaram os factos tenebrosos. Durão Barroso, esse, moita carrasco! Porém, qualquer deles é cúmplice da imensidão da desgraça. Nada lhes vai acontecer. Enquanto os responsáveis morais e factuais vivem regalados, meia dúzia de soldados são culpabilizados e pagam pesadas penas. "Foi-nos dito que a tortura era legítima porque constituía um modo de combater o terrorismo", disse outro soldado.

As sapatadas de al-Zaidi não ferem, somente, nem unicamente injuriam o pobre homem que, durante oito anos, colocou o planeta em estado de medo e de crispação. Elas são, também, um terrível requisitório contra todos aqueles que, pela conivência ou pelo silêncio, admitiram o crime de genocídio praticado no Iraque. Mas há homens e mulheres livres que não carregam esse fardo nem coram com essa vergonha. Ponham-me, modestamente, nessa lista de honra.
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