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23 de Fevereiro de 2010 às 11:39

Os santos não têm "rating"

A obra prima de William Somerset Maugham "Of Human Bondage" recebeu, nas suas traduções portuguesas, o título "Servidão Humana". Nela, o protagonista Philip Carey, marcado por uma deficiência congénita e por uma educação severa...

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A obra prima de William Somerset Maugham "Of Human Bondage" recebeu, nas suas traduções portuguesas, o título "Servidão Humana". Nela, o protagonista Philip Carey, marcado por uma deficiência congénita e por uma educação severa ministrado por um tio ríspido, leva uma paixão ao extremo e torna-se um quase escravo da sua amada (aliás, a versão brasileira do filme homónimo de 1946 intitulou-se "Escravo de uma Paixão").

Os valores mobiliários representativos de dívidas dos seus emitentes designam-se em português "obrigações", e em inglês "bonds". O historiador inglês Niall Ferguson, no seu magnifico "The Ascent of Money", intitula com subtileza o capítulo que dedica às obrigações "Of Human BONDage". Este novo sentido para a "servidão humana" poderá afigurar-se exagerado aos menos versados em matérias financeiras. Poderá, mas não o é. Todos, quer queiramos quer não, com ou sem o sabermos, dependemos dos mercados de obrigações. Tal como o Carey de Maugham se tornou substancialmente um servo da sua paixão, a raça humana evoluiu para um estado de submissão ao mercado de obrigações. As razões são duas: as poupanças que hão-de, depois de adequadamente investidas e rentabilizadas, assegurar o pagamento das reformas dos cidadãos, estão maioritariamente investidas nestes mercados (porque a combinação de rentabilidade e risco que proporcionam é geralmente tida como apropriada para aplicações onde se exige uma exposição moderada ao risco), e é nestes mercados que se estabelece o preço da dívida pública, a partir do qual é estabelecido o preço do dinheiro para todo e qualquer uso, do investimento mais estruturante à aplicação de tesouraria mais banal. Desta forma, o preço de todos os activos, das acções às casas, depende do mercado de obrigações. A vida de todos nós é muito - mas mesmo muito - influenciada pelo que se passa num mercado suficientemente sofisticado para o seu funcionamento ser ininteligível para a grande maioria de nós.

Os mercados de obrigações são, assim, essenciais; o seu bom funcionamento é crucial para que o sistema financeiro trabalhe, e, consequentemente, para que a esfera real da economia possa prosperar. Neste contexto, é essencial que os investidores nestes mercados possam aceder à informação relevante para a fixação das taxas de juro apropriadas. Ora estes mercados são impessoais: do lado da procura estão muitos investidores, uns mais sofisticados do que outros, e do da oferta estão os Estados e as empresas que carecem de financiamento para os seus "défices". Entre uns e outros, não há troca de informação e contacto do tipo da que é exequível entre um banco e o seu cliente. Para obviar a esta limitação existe o "rating", ou notação de risco na, sempre mais extensa, designação portuguesa. O objectivo do "rating" é classificar, de forma sintética e acessível ao investidor potencial subscritor de emissões de dívida não intermediada por bancos, a capacidade de cumprimento do serviço da dívida (juros e amortização de capital) de um emitente. Esta classificação diz sempre respeito a uma emissão concreta, e é um instrumento específico de mercados de obrigações, que se caracterizam, do ponto de vista dos investidores, pela disponibilidade de apenas informação pública. As agências de "rating", pelo contrário, têm normalmente acesso a informação confidencial, permitindo em princípio a redução das assimetrias de informação entre emitente e subscritor, através da disponibilização de uma "nota" cuja divulgação não põe em risco a confidencialidade da informação, pois as agências de "rating" assumem um dever de sigilo.

Em termos históricos, as agências de "rating" de hoje foram precedidas pelas companhias de informações comerciais, situando-se a primeira em Nova Iorque em 1837. Esta companhia viria a ser adquirida por Robert Dun, e posteriormente fundida com uma agência fundada em 1849 por John Bradstreet para dar origem à Dun & Bradstreet, que, tal como hoje, prestava informações sobre comerciantes. No dealbar do século passado (em 1909) John Moody apresentou a primeira notação de uma emissão de obrigações, no caso de uma companhia ferroviária, sendo posteriormente acompanhado pela Poor's Publishing Co. (em 1916), Standard Statistics Co. (em 1922) e Fitch Publishing Co. (em 1924). A Standard & Poor's resultaria de uma fusão em 1941.

As agências de "rating" vêm de longe, surgiram porque eram necessárias ao bom funcionamento de um mercado que é essencial, e não estão para desaparecer. Pode argumentar-se que avaliaram mal os riscos antes da crise de 2007. É um facto, e não foi a primeira vez. A literatura financeira mostrava claramente, bem antes de 2007, que, muito embora as agências fossem fiáveis quanto a ordenar adequadamente os riscos, pois os "yields" de mercado seguiam de perto os "ratings" atribuídos e a percentagem de incumprimentos variava inversamente com a notação, acusavam limitações quanto à avaliação do risco de crédito em termos absolutos, pois as frequências de incumprimento por categoria de notação revelavam-se muito instáveis no tempo. Em circunstâncias excepcionais como as de 2007, essa instabilidade foi muito mais pronunciada, o que não significa que se deva, ou possa, remeter as agências de "rating" para a categoria das inutilidades. Os Santos podem não ter "rating", mas as empresas - e as Repúblicas… - endividadas que o não tenham de bom nível sofrerão as consequências.


Professor Auxiliar, IBS
Coluna à terça-feira




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