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Rui Alpalhão 02 de Novembro de 2010 às 11:32

Juno e a nuvem

O Tratado de Maastricht foi assinado, na cidade que lhe deu o nome, no longínquo ano de 1992.

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Entrou em vigor em 1993, transformou a CEE em UE e lançou as bases da futura moeda europeia, imaginativamente designada euro. Continha uma série de regras, ditas "critérios de convergência", a que os subscritores se obrigavam voluntariamente com o objectivo, que viria a ser atingido em 1999, de juntar à União Económica uma União Monetária. No âmbito das finanças públicas, estes critérios impunham dois singelos limites superiores: um para os défices orçamentais anuais - 3% do PIB - e outro para o "stock" de dívida pública - 60% do PIB. Portugal, membro da CEE desde 1986, assinou o Tratado. No ano da respectiva entrada em vigor, o défice orçamental português era de 8,9% do PIB, e a dívida pública representava 59,1% deste. Portugal estava assim bem acima do limite fixado no que ao défice anual diz respeito, e verificava à tangente a restrição relativa ao "stock" de dívida pública.

O "stock" de dívida pública e o défice orçamental estão indissociavelmente ligados, não sendo por acaso que convivem nos critérios de convergência. De facto, o défice não é mais do que a parte das despesas públicas que os impostos não cobrem. Quando há défice, o deficitário Estado gasta mais do que os impostos que cobra, e, como tem, ainda assim, de liquidar as suas contas, vê-se compelido a, alternativamente, emitir moeda ou dívida pública ou vender activos. A República dedicou-se a esta tarefa - as privatizações - com intensidade desde 1989, e sacrificou a sua capacidade autónoma de emissão monetária em 1999 com a União Económica e Monetária. Deste então, podemos considerar a dívida pública portuguesa directa consequência dos défices orçamentais, com a excepção única do efeito compensatório das receitas das privatizações. Em 1993, Portugal, encostado ao limite superior admissível no que ao "stock" de dívida pública dizia respeito, só tinha duas boas soluções para preencher ambos os critérios de convergência: equilibrar o seu saldo orçamental ou continuar a privatizar com republicana gana. Os défices baixaram paulatinamente até atingirem os miríficos 3% do PIB (o que aconteceu em 1997, com Guterres ao leme e Sousa Franco na casa das máquinas), sem nunca deixarem de contribuir para a acumulação de dívida pública, a qual se manteve, graças às privatizações, razoavelmente estável em percentagem do PIB, ainda que fixando-se pontualmente acima do limite de 60% em 1995 (o ano da transição, de Cavaco Silva e Catroga para Guterres e Sousa Franco), barreira que viria a furar, de baixo para cima e com vigor, de 2005 (já com Sócrates na chefia do Governo e Teixeira dos Santos em funções nas Finanças) em diante. O limite de 3% foi furado mais cedo, em 2001, após quatro anos de cumprimento, e ainda com Guterres em São Bento (e Oliveira Martins na Infante D. Henrique), conferindo à República Portuguesa a honra de ser o primeiro país membro da União a ser sujeito a um EDP (excessive deficit procedure). Em 2005 Portugal, presumivelmente exausto após dois anos de cumprimento à tangente, juntou a essa honra a de ser o primeiro Estado-membro a averbar um segundo EDP.

Por esta altura alguns economistas não obliterados pelo (insustentável?) peso da governação iam apontando, descomplexadamente, o singelo problema da sustentabilidade. O Prof. António Afonso, do ISEG, publicou em 2007 um "stress test" ("Public Finances in Portugal: a brief long-run view") onde demonstrava que, com uma taxa de juro para a dívida portuguesa de 4,5% e taxas de crescimento nominais anuais de 3,5% para o PIB, 0% para as receitas e -0,5% para a despesa pública primária (ambas em percentagem do PIB), a dívida pública portuguesa continuaria a subir, em percentagem do PIB, fixando-se em 70% deste em 2010. Como nem o PIB cresceu, nem a despesa primária diminuiu, nem a taxa de juro se conteve educadamente em 4,5%, a previsão falhou ligeiramente, e o rácio deverá ficar em 86%. No "Fiscal Monitor" de Maio deste ano, editado pelos" homens sem rosto" do FMI, realiza-se igualmente um testes de stress, desta vez (sinal dos tempos…) virado para a quantificação dos requisitos para a redução dos níveis de dívida pública para níveis "prudentes" ao longo das próximas duas décadas. Para Portugal, os resultados indicam que a recuperação do maastrichiano nível de 60% em 2030 requer uma melhoria do saldo orçamental primário de 7,8 pontos percentuais entre 2010 e 2020, e a manutenção deste em +3,7% entre 2020 e 2030. Tarefa exigente, para quem parte de um saldo primário de -4%.

Muitos comentadores oporão a estes números a ideia de que os requisitos de Maastricht não são um objectivo relevante na conjuntura recessiva que atravessamos, e que podemos e devemos viver com níveis de dívida pública mais altos. Talvez possamos, mas não será a mesma coisa, como está amplamente documentado. Recentemente, Reinhart e Rogoff, no seu monumental "This Time is Different" reportaram uma diferença de 4,2 pontos percentuais nas taxas médias de crescimento do PIB entre economias avançadas com níveis de dívida pública altos (>90% PIB) e baixos (<30% do PIB), diferença essa a favor dos países com níveis baixos de dívida pública. Já em 1982, o americano Martin Feldstein havia introduzido a ideia dos efeitos não-keynesianos dos défices orçamentais, argumentando que reduções permanentes da despesa pública podem ser expansionistas se forem percebidas como indicativas de uma redução futura de impostos, e logo de maior rendimento permanente.

É certo que em Maastricht se encontram as ruínas de um templo de Juno e Júpiter, e que este terá criado uma nuvem à semelhança daquela para confundir - e castigar - o crédulo criador de cavalos Ixião, culpado de paixão assolapada pela deusa. Mas não consta que Ixião, que tomou a nuvem por Juno, escrevesse orçamentos.


Professor Auxiliar, IBS
Coluna à terça-feira




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