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19 de Agosto de 2011 às 11:38

Os grandes esquecidos

Há dias, a RTP Memória exibiu o filme "Saltimbancos" [1951], de Manuel Guimarães, numa discreta revisitação à obra de um autor esquecido

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Há dias, a RTP Memória exibiu o filme "Saltimbancos" [1951], de Manuel Guimarães, numa discreta revisitação à obra de um autor esquecido e, na época, vilipendiado pela crítica de Direita. Os ecos da estreia do filme já se esmaeceram, mas o facto teve foros de acontecimento invulgar. Manuel Maria Múrias, jornalista do "Diário da Manhã", órgão oficial do regime, cobriu a película de insultos, num estilo caceteiro peculiar do autor. Mas os nomes de intelectuais de Esquerda, que apoiaram a obra de Guimarães suplantaram as injúrias.

Está por fazer, embora os documentos estejam publicados em revistas e jornais da época, a história da Resistência cultural ao fascismo, em especial no sector do cinema e dos cineclubes. As relações entre o escasso e paupérrimo cinema português e a literatura eram o que podiam ser, embora existissem com participações muito valiosas. Guimarães [1915-1975] era um artista plástico do Porto, que se estabelecera em Lisboa, e logo se juntara, nas tertúlias da convivência política e artística, aos grupos antifascistas. Os cafés regurgitavam destes então jovens, e os locais de encontro eram conhecidos: Paladium, Café Chiado, Chave d'Ouro, as duas Brasileiras (a do Chiado e a do Rossio), e o Gelo, entre outros, numerosos e variados.

Mário Dionísio, num estimulante prefácio ao livro "Poemas Completos", de Manuel da Fonseca, fornece um panorama geral da época, das tertúlias e das pessoas que as frequentavam. Praticamente tudo o que é importante na cultura portuguesa passou pelos cafés referidos. "Saltimbancos" integra-se no movimento geral de protesto e de resistência ao salazarismo. É impressionante a extensão desse movimento, que se alia à estética e aos propósitos do neorealismo. Se, hoje, alguém folheasse, com minúcia e seriedade, as revistas culturais, as páginas literárias e a acção do associativismo, certamente não deixaria de se surpreender com a energia e a força que se lhe depararia.

Muitos dos nomes desapareceram, na voragem do esquecimento. Quem lê Leão Penedo, Rogério de Freitas, Alexandre Cabral, Manuel do Nascimento, Egito Gonçalves, João Apolinário, Luís Veiga Leitão, Garibaldino de Andrade, Antunes da Silva - ou, mesmo, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Alves Redol, Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira, Alexandre Pinheiro Torres, tantos, tantos mais? E, no entanto, eram cimeiros na aventura cultural daqueles tempos. O cinema despertava grandes atenções, não só pela popularidade que o cercava como pelo poder de infiltração que possuía. Redol, Namora, Manuel da Fonseca foram atraídos pela sedução. "Saltimbancos", por exemplo, baseia-se num denso romance de Leão Penedo, "Circo", que obteve grande êxito de estima e de tiragem. É talvez difícil imaginarmos, agora, a nomeada dessas pessoas, e da importância que tiveram, na divulgação dos problemas portugueses e das extremas dificuldades com que vivia o povo.

Os livros dispunham de uma defesa, simultaneamente o seu pretexto: com mais de cento e vinte páginas eram dispensados de censura prévia. Mesmo assim, autores como Alves Redol e, posteriormente, Manuel da Fonseca (este, a partir de "Seara de Vento"), não publicavam sem o "nihil obstat" dos coronéis. Os jornais, esses, eram, vistoriados linha a linha pelos militares encarregados de manter a ordem dos costumes e os costumes na ordem. Foi assim, durante quase meio século. E as tendências para o esquecimento, manifestadas das formas e das maneiras mais diversas, não passam de infâmias. A História é facilmente manipulável, mas a verdade dos factos acaba por ser conhecida.

O Manuel Guimarães de "Saltimbancos" viveu com dificuldades extremas. Tido como comunista, trabalhava em artes gráficas e pintura, para suprir as necessidades. Pai de Dórdio Guimarães, que o ajudou em filmagens, nunca se lastimou, jamais se queixou das afrontas. Eu era muito jovem, mas já participava nessas tertúlias memoráveis, pois concentravam o que de melhor havia na sociedade cultural portuguesa. E as relações entre jornalistas, escritores, músicos, cineastas, actores, arquitectos, pintores correspondiam a uma urgência e a uma necessidade epocais. Muitos desses homens e mulheres pagaram muito caro a decência de quererem ser livres e de não pactuarem com o fascismo. Muitos, mas nem todos. E há histórias excruciantes de abandonos e de traições que também mereciam ser conhecidas. Não como julgamento e castigo, sim como conhecimento de uma época, cuja violência obrigava os portugueses a envolvimentos extraordinários.

Mas valeu a pena. Os melhores de nós são guardados em recordações e em memórias calorosas. Os que os caluniam e difamam, servindo-se das sombras repugnantes do anonimato, não passam de vulgares canalhas.



b.bastos@netcabo.pt

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