Opinião
Os diários de Adolfo
Estamos na Primavera de 1983. Na calada da noite, vários vultos tomam posições nos jardins da quinta beirã. Daí avistam-se claramente as luzes das várias divisões da esplendorosa mansão do início do século XX e ouvem-se as gargalhadas e a música clássica
De repente, os potentes projectores da GNR iluminam toda a zona circundante da mansão, fazendo aparecer o prateado Daimler Double Six estacionado em frente à porta principal. É então que um megafone indiscreto, acompanhado pelas luzes das sirenes que agora se acendem, convida Afonso a entregar-se às autoridades policiais sem resistência. Instantes depois, no meio de uma enorme confusão, dois vultos abandonam a propriedade, utilizando uma passagem secreta construída para escapar a possíveis perseguições políticas.
Não era, no entanto, de perseguições políticas que se tratava naquela noite?
Mais de vinte anos volvidos sobre este episódio, Pedro Dias, filho de Afonso, prepara-se para dar um golpe que, espera, o tornará imensamente rico e o compensará parcialmente pelo aparente afastamento do pai?
Aguardando que o administrador de um dos maiores grupos de media nacionais o recebesse, Pedro recordava mentalmente todos os passos da rocambolesca história que inventara. A dificuldade inicial de ser recebido pela administração do dito grupo, foi prontamente desvanecida, quando, por interposta pessoa, chegou a confirmação de que Pedro era de facto filho de um dos maiores falsários de que havia memória. Rios e rios de tinta tinham corrido durante anos, vendendo milhares de jornais, especulando sobre o paradeiro de Afonso e sobre o valor que teria a descoberta de qualquer tipo de informação que fornecesse pistas sobre a autenticidade ou não de um vasto conjunto de documentos que fizera passar de mãos avultadas somas.
«O senhor doutor vai recebê-lo agora» – anunciou a elegante secretária, após entrar na sala, magnificamente decorada, onde Pedro esperou pouco tempo.
Um verdadeiramente entusiástico «então é você que é o filho de Adolfo» marcou os preliminares de uma memorável conversa, que começou com a recordação de que o pai de Pedro e o seu mais fiel colaborador haviam conseguido escapar da quinta na noite do cerco pela autoridade policial?
Sobre o pai nunca mais ouvira falar - disse. Mas, sobre o colaborador, veio a saber-se, dias depois da fuga, que havia sofrido um acidente na zona do Bussaco, quando se encaminhava para Lisboa na posse de valiosa documentação que lhe fora confiada por Afonso. Na altura, a família guardou segredo sobre o facto, mas acabou por conseguir recuperar três diários encontrados no local do acidente dentro da 4L.
Ora, eram exactamente esses ditos diários que Pedro vinha negociar com o grupo de media?
Um dos diários, designado «Documentação Oficial», identificava os clientes a quem tinham sido forjados bilhetes de identidade, passaportes, livretes, títulos de propriedade, cartas de condução e outros «cartões», supostamente passados pelo Estado. O «livro» fazia ainda referência a diferentes truques para lavar ou branquear documentação falsificada, incluindo a perda de documentação pessoal - depois substituída por documentos correctamente emitidos - e a compra e venda fictícia de automóveis - em que a falsificação de uma simples declaração de venda podia levar à substituição de um título de propriedade falsificado por um autêntico (as empresas de aluguer de automóveis devem conhecer bem este truque).
Outro diário, apelidado de «Certidões», dava conta de todos os destinatários de atestados médicos, diplomas, cartas de recomendação, certidões de óbito e de nascimento, alvarás e outros «A4», contendo, igualmente, algumas notas sobre como falsificar «chancelas» e outras garantias de autenticidade.
O terceiro, com o título «Escritos privados», continha referências a contratos, doações e testamentos, por um lado, e a autógrafos, cartas e diários de celebridades, por outro - fazendo prever que tanto os primeiros, por lei, quanto os segundos, por raridade, deverão ter estado na origem de numerosos enriquecimentos sem causa...
Após descrever o conteúdo dos diários e responder a um conjunto de curiosidades entretanto surgidas, Pedro esperou pela pergunta sacramental, vinda do administrador – «então e quanto é que esse material nos poderia custar?» A resposta não se fez esperar – «um milhão de euros por cada diário». O administrador, apesar de surpreendido, não perdeu a compostura - «Como é que eu sei que esses diários eram mesmo do seu pai?» – questionou, enquanto se recostava para trás e acendia um longo charuto. Pedro simulou indignação com a pergunta e encaminhou-se para a porta. Quando já tinha a mão pousada sobre a maçaneta, ouviu o esperado «vá lá, não me leve a mal», vindo do administrador, que entretanto se havia levantado. «Compreende que estamos a tratar de uma soma muito importante» – continuou, voltando a sentar-se.
Pedro interrompeu o administrador - «Se não quiser comprar, não compra. Tenho a certeza de que haverá muita gente interessada em tornar público o conteúdo destes diários, quanto mais não seja pelo facto de os mesmo poderem vir a desfazer muitos equívocos sobre a autenticidade de documentos que podem ter alterado vidas para sempre. Trata-se de uma acção de utilidade pública, em que estou disposto a violar a vontade presumida do meu desaparecido pai. Como pode duvidar dos meus intentos? Só porque lhe peço uma compensação por anos de sofrimento? Só porque preciso desesperadamente deste dinheiro?»
Desta feita foi o administrador que interrompeu Pedro – «se me conseguir arranjar outros manuscritos do seu pai, para que possa compará-los com a letra dos diários, pago-lhe a quantia pedida sem pestanejar!»
Pedro, deixou-se de teatros e combinou com o administrador que no dia seguinte lhe traria duas ou três cartas dirigidas por Afonso à sua mãe.
As cartas que Pedro haveria de mostrar ao administrador, no dia seguinte, tinham sido escritas, com tempo, pelo seu próprio punho, na altura em que o seu plano para enriquecer ganhara forma.
No dia seguinte, um administrador radiante e um Presidente convencido, ambos pouco interessados em provar a falsidade dos diários que lhe garantiriam conteúdos jornalísticos incalculavelmente apetecíveis durante meses a fio, entregaram um cheque a Pedro, ali mesmo passado com uma Classic Pens CP3-Odyssey, depois de recolherem os três diários, forrados a cabedal, e cerrarem um longo aperto de mão.
Pedro olhou para o seu Lange & Söhne Datograph – eram 11h da manhã; dentro de algumas horas estaria muito longe dali...
A primeira página da revista mais lida do grupo de media, exibia na Quinta-feira seguinte, o altamente chamativo título «Os diários de Adolfo». Quem não quereria conhecer integralmente a história de alguém que tinha enganado tudo e todos durante anos a fio? Apesar de uma tiragem reforçada, a edição esgotou – como esgotariam as cenas dos próximos episódios...
Só que depois veio a bronca. Ao tentar vender os direitos de publicação de excertos dos diários a outros grupos concorrentes, os «clientes» de Pedro foram confrontados com uma dura realidade: os diários eram falsos – como se veio a provar, a partir da comparação dos mesmos com escritos de Adolfo cuidadosamente guardados pela polícia durante os vários anos que durou a investigação da sua fuga.
Filho de peixe sabia nadar. E quem sabe se a história não seria agora, a do pequeno peixe que vai ao encontro do seu pai...