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Luigi Zingales - Professor de Finanças 08 de Outubro de 2012 às 23:30

Os barcos em chamas da democracia

Para os países do Sul da Europa, aderir ao euro foi – explícita ou implicitamente – uma forma de obrigarem os seus cidadãos a aceitar um grau de disciplina orçamental que seriam incapazes de adoptar sozinhos.

Desde finais dos anos 70, a difusão académica da teoria dos jogos tem levado os macroeconomistas a enfatizarem a importância do "compromisso", uma estratégia que visa promover resultados económicos de longo prazo limitando o grau de liberdade dos decisores políticos. A ideia parece ilógica: como se pode produzir mais com menos?

Se bem que não seja historicamente exacto, um dos melhores exemplos de compromisso estratégico provém da lenda de Hernán Cortés, segundo a qual ele decidiu, no seu intento de conquistar o México, queimar os navios que o tinham transportado, e à sua armada, desde Espanha. À primeira vista, parece um acto de loucura: porquê destruir intencionalmente o único meio de transporte para fugir em caso de derrota? Cortés fê-lo, alegadamente, para motivar o seu exército. Ao perceberem que não tinham escapatória possível, os soldados ficaram altamente motivados para vencer. Diz-se que Alexandre, o Grande, fez o mesmo quando se lançou à conquista da Pérsia.

Para ser eficaz, uma estratégia de compromisso tem de ser credível –, ou seja, não pode ser facilmente revertida. Neste sentido, a estratégia de Cortés era perfeita: em caso de derrota, os espanhóis não teriam tempo de reconstruir as embarcações queimadas. Para funcionar adequadamente, uma estratégia de compromisso tem também de ter custos em caso de fracasso: se Cortés tivesse sido derrotado, nenhum soldado espanhol teria escapado com vida. Foi precisamente esse custo que ajudou a motivar os seus soldados.

O problema é que só ouvimos falar dos exemplos históricos bem sucedidos desta estratégia. Se a estratégia de Cortés tivesse fracassado, ele teria caído no esquecimento ou seria recordado como o tolo arrogante que achou que podia derrotar um grande império.

Uma das primeiras aplicações desta estratégia na política económica foi a criação dos bancos centrais. Diz-se que os responsáveis pela política monetária devem ser independentes do sistema político porque, quando as eleições se aproximam, os dirigentes eleitos irão certamente pressioná-los no sentido de baixarem temporariamente a taxa de desemprego, mesmo que isso signifique ter uma inflação permanentemente mais alta. Para evitar esta situação ineficiente, os governos devem atar as mãos dos banqueiros centrais, afastando-os das interferências políticas.

Muitos macroeconomistas atribuem a descida sustentada da inflação desde inícios da década de 80 ao recurso generalizado a esta estratégia. E, animadas pelo seu êxito, as autoridades começaram a aplicá-la noutros âmbitos. A liberalização financeira foi "vendida" como um compromisso de seguir políticas favoráveis para o mercado. Se um futuro governo se desviasse dessa política, a fuga de capitais iria derrubá-lo.

O mesmo se aplica ao extenso financiamento estatal no estrangeiro, aos comités de emissão de moeda e às uniões monetárias. A criação do euro não é mais do que uma forma extrema desse compromisso: os países europeus tentaram ligar-se à disciplina orçamental alemã.

A difusão destes mecanismos coloca a questão da democracia. Quando Cortés alegadamente queimou as embarcações espanholas, não fez nenhuma sondagem para o efeito. Se o tivesse feito, talvez tivesse ganho (pois a sua estratégia era inteligente), mas estamos longe de ter a certeza disso.

Mas mesmo quando a estratégia de compromisso produz incentivos benéficos, poderá não ter valido o risco que se correu. Talvez Cortés, cego pela sua ambição de glória, estivesse disposto a sacrificar a sua tropa, mesmo sendo as probabilidades de vitória tão ínfimas.

Nos dias de hoje, felizmente, quem toma essas decisões são os governos democraticamente eleitos que, por isso, reflectem a vontade do povo. Ainda assim, atendendo à sua natureza, estas decisões merecem um especial escrutínio. Afinal de contas, trata-se – por natureza - de decisões irreversíveis, que atam as mãos dos futuros governos, o que as torna equivalentes a normas constitucionais. Como tal, não devem ser objecto do mesmo processo de aprovação que a legislação normal.

Este problema é particularmente severo quando as medidas iniciais que selam o compromisso apresentam benefícios de curto prazo mais atractivos do que queimar navios. Quando um governo começa a endividar-se no estrangeiro ou decide aderir a uma união monetária, os benefícios assumem a forma de taxas de juro mais baixas. Assim, os benefícios imediatos tornam-se mais politicamente salientes do que os potenciais custos futuros. Ao recorrer a esta estratégia, um governo maquiavélico pode induzir um eleitorado relutante a aceitar uma política que é contrária à sua vontade.

Muitos dirão que é precisamente aí que reside o problema. Para os países do Sul da Europa, aderir ao euro foi – explícita ou implicitamente – uma forma de obrigarem os seus cidadãos a aceitar um grau de disciplina orçamental que seriam incapazes de adoptar sozinhos. Mas terá sido uma decisão democrática ou foi uma decisão que uma elite "iluminada" impôs aos seus inadvertidos cidadãos?

Receio que estejamos perante a segunda hipótese – daí o crescente ressentimento contra a União Europeia. A juntar-se a isto está o facto de os actuais líderes europeus não reconhecerem as suas decisões do passado. Não admitem que foram eles – ou os seus antecessores – que queimaram os navios. Culpam a Europa. O resultado é que o euro, que foi vendido como uma maneira de integrar ainda mais a Europa, está a desmoronar-se.


Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro

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