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Odivelas, Janeiro de 2011

14de Janeiro de 2011, sexta-feira. José, 36 anos, vive num confortável T3 em Odivelas, uma das principais cidades-dormitório da Grande Lisboa.

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14de Janeiro de 2011, sexta-feira. José, 36 anos, vive num confortável T3 em Odivelas, uma das principais cidades-dormitório da Grande Lisboa.

São 7 horas da manhã e José desperta ao som de um clássico dos Supertramp que parece provir de alguns dos imperceptíveis altifalantes dispostos por todo o apartamento. Há alguns anos, José havia instalado o seu próprio kit wireless LAN, um sistema muito útil e simples de utilizar, sobretudo após os avanços verificados no uso da rede eléctrica doméstica para fins de telecomunicações.

José está levemente irritado porque teria preferido ficar a dormir um pouco mais, após uma árdua noite de trabalho no seu escritório doméstico. Como sempre, esqueceu-se de prevenir o computador.

“Os computadores continuam tão estúpidos como há vinte anos”, desabafa. “Já devia ter comprado um daqueles programas com função de reconhecimento do sono. Adiante, onde estão os meus óculos?”.

José não tem quaisquer problemas ópticos. Os óculos VV (”virtual vision”) são simplesmente a melhor maneira de se penetrar no mundo virtual. Recostado na cama, decide abrir o e-mail. “Abrir o correio!”, exclama pausadamente José, cuja voz cavernosa da manhã sempre lhe colocou problemas de reconhecimento digital.

Quando se preparava para deslocar o rato virtual com um simples movimento das mãos, foi abanado por mensagens vocais e ícones ameaçadores.

José tinha comprado os primeiros óculos VV havia cinco anos. Já nem se lembrava do nome do fornecedor, provavelmente desaparecido ou adquirido por uma empresa de maior porte.

Naquele tempo, o uso deste tipo de equipamentos era muito limitado. Não passavam de um ecrã transparente acoplado a um efeito de espelho. Nada de comparável aos óculos de hoje – uma imagem virtual, simultaneamente opaca e transparente, escritório electrónico com microfone incorporado e auriculares de reconhecimento vocal.

Na caixa do correio há uma mensagem da empresa que fabricou os óculos. Informa-o de que houve uma mudança nas especificações da sua wireless LAN e que, por isso, terá de fazer um upgrade do software de rede. “Outra vez! É a segunda nesta semana!”. O mail pergunta se quer ver a nova versão instalada de imediato. José rosna “Está bem, pronto!” e reclina-se na cama. De repente, tudo fica preto. Algo no upgrade era incompatível com o resto do software. Não é a primeira vez que acontece e José já conhece os truques. Tira os óculos, levanta-se da cama e dirige-se ao computador central.

Algumas teclas batidas e uns menus volvidos, os óculos voltam a estar operacionais. “Posso regressar à cama”, conclui José.

O gestor do sistema doméstico lembra-lhe que o café já está pronto há algum tempo na cozinha. É nesse momento que decide deslocar-se à empresa. Aborrece-se com o tele-trabalho e precisa de vez em quando encontrar-se com os colegas. “Bom, já que saio, é melhor informar este estúpido gestor virtual doméstico”. Enquanto se dirige para a cozinha, o ecrã no corredor previne-o outra vez de uma deficiência de antena. “Já sei, tenho de comprar uma nova.

Estas antenas são piores que as lâmpadas. Quando é que serão capazes de fabricar coisas baratas e fiáveis?”, grunhe José, descontente. Uns segundos mais e aparece um anúncio: “O melhor preço do momento é o Hometel 155 Mb/s compatível com a versão V2006. Dez euros. Disponível em stock. Prazo de entrega: um dia. Compra?”. “OK, compro. Use a minha conta no banco Millenium”. A transacção flui sem problemas e José só tem de fazer mais um clique de confirmação.

Depois do duche tomado, José sai de casa sem qualquer cartão de identificação nem chaves. Só os óculos VV. A porta do apartamento fecha-se sozinha e o carro já está à espera na garagem. A tecnologia pioneira V2008 ainda coloca alguns problemas de segurança, mas as coisas melhoraram muito desde o seu lançamento. O carro sabe qual o melhor caminho a tomar, em função dos fluxos de tráfego, mas José ainda prefere o modo manual. Ele, que sempre foi um apaixonado pelas novas tecnologias, aprendeu por conta própria a nunca confiar demasiado nelas.

Uma vez no escritório, José senta-se e activa o posto de trabalho. Não há muito que fazer. Almoça com os colegas e faz umas compras no shopping. Pelas cinco da tarde, regressa a casa. Tem um jantar virtual combinado com a namorada, que vive nos Açores. Conheceram-se numa mostra de arte virtual desfrutando um mesmo quadro. Mais tarde e pela noite fora gozará no espaço cibernético a febre de sexta-feira à noite, “já que os sábados foram feitos para se dormir toda a manhã”, suspira José.

De repente, lembra-se. Amanhã é dia de eleições. É verdade que, após uma longa luta da comunidade cibernáutica, os políticos tinham cedido ao voto electrónico a partir de casa, o que torna as coisas muito mais cómodas. Mas há aquela regra absurda da janela temporal – o voto à distância tem de se processar entre as 8 e as 9 da manhã –, que só vem complicar a vida aos noctívagos. Que fazer? “Que se lixe, não voto”, conclui José.

Nota final: Este conto é uma adaptação de um dos cenários futuristas traçados pela Foundation for Strategic Research, uma prestigiada instituição sueca virada para os estudos de prospectiva. A moral da história fica para mais tarde.

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