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05 de Janeiro de 2011 às 11:41

O mecanismo de instabilidade da Europa

Em 2010, a Europa iria ser "a sociedade baseada no conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo".

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Esta proclamação figura na declaração oficial da Comissão Europeia na Cimeira de Lisboa, realizada em 2000. Agora, decorrida uma década desde essa promessa temerária, é oficial: a Europa está na cauda do resto do mundo em matéria de crescimento. Enquanto os membros da União Europeia registaram um crescimento de 14% ao longo dos últimos dez anos, a América do Norte cresceu 18%, a América Latina 39%, África 63%, o Médio Oriente 60%, a Rússia 59%, Singapura, Coreia do Sul, Indonésia e Taiwan 52%, Índia 104% e China 171%.

Os europeus queriam atingir o seu objectivo através de, entre outros meios, uma maior protecção ambiental e uma maior coesão social - tratam-se de metas desejáveis, mas que não constituem, certamente, estratégias de crescimento. Assim, a Agenda de Lisboa acabou por ser uma farsa.

O Pacto Europeu de Estabilidade e Crescimento, de 1995, não conseguiu fazer melhor. Os Estados-membros da UE concordaram em limitar os seus défices orçamentais a 3% do Produto Interno Bruto, de modo a assegurarem a disciplina da dívida no seio do Euro, para que nenhum país pudesse usar a nova moeda para fazer dos seus vizinhos reféns e obrigá-los, no futuro, a irem em seu socorro. Mas a verdade é que os países da União Europeia excederam esse limite de 3% por 97 vezes.

Em 29 destes casos, o Pacto permitiu estes desvios à sua formulação original porque os países em causa estavam em recessão. Contudo, nos restantes 68 casos, os défices superiores a 3% do PIB constituíram claras violações do Pacto, pelo que o Conselho Europeu dos ministros das Finanças (Ecofin) deveriam ter imposto sanções. No entanto, nem um só país foi alguma vez penalizado.

A partir daí, as restrições políticas em matéria de dívida que foram auto-impostas pelos membros da Zona Euro nunca foram levadas a sério, pois os prevaricadores e os juízes eram um só. Um tema digno de Kafka e de Molière.

Com efeito, em 2010, dois países - a Grécia e a Irlanda - foram resgatados pelos restantes membros da UE, apesar de o artigo 125º da versão consolidada do Tratado da União Europeia estipular que nenhum Estado-membro tem de responder pela dívida de outro, uma garantia que os alemães exigiram como pré-condição para desistirem do seu amado marco. Essa doutrina de uma rígida disciplina financeira foi abolida subitamente em Maio de 2010, quando se proclamou que o mundo iria acabar por colapsar, a menos que a Alemanha abrisse os cordões à bolsa.

O facto de a Grécia ter podido aderir ao Euro graças a uma fraude evidente, ao declarar que o seu rácio da dívida estava abaixo do limiar dos 3% do PIB, quando na verdade estava bastante acima desse nível, simboliza muito bem a falta de rigor na aplicação do Pacto de Estabilidade e de Crescimento. Perante o comportamento enganoso da Grécia, o Eurostat (gabinete de estatísticas da União Europeia) declarou que a sua contraparte grega e a autoridade suprema de supervisão da Grécia tinham "falsificado deliberadamente" os dados. Mas isso pouca diferença fez: a Grécia já estava no Euro - com a capacidade e vontade de tomar os restantes Estados-membros como reféns.

A Alemanha já abriu os cordões à bolsa e actuou na qualidade de primeira socorrista da Grécia. Além disso, na sua cimeira de antes do Natal, os chefes de Estado europeus decidiram emendar o Tratado da União Europeia, legitimando o Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira, agora denominado Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla em inglês), e transformando-o numa instituição permanente.

No regresso a casa, a chanceler alemã, Angela Merkel, que durante meses insistiu em que se pusesse fim ao referido mecanismo, celebrou-o como uma vitória sobre o resto da Europa. Com efeito, tratou-se em grande medida de uma concessão necessária ao Tribunal Constitucional da Alemanha, que argumentou que as medidas de resgate careciam de uma adequada base legal.

Quanto à participação dos bancos credores no resgate dos países em apuros, que tinha sido durante muito tempo uma condição sine qua non imposta por Merkel, passou a ter um estatuto opcional.

O Banco Central Europeu (BCE) também perdeu a sua credibilidade. Há um ano, prometeu deixar de aceitar Obrigações do Tesouro com notação 'BBB-' como garantia para as suas operações monetárias. Mas também essa promessa deixou de ser cumprida em Maio, quando o começou a comprar "junk bonds" da Grécia. Entretanto, o BCE anunciou que terá de duplicar os seus fundos próprios.

As manobras da União Europeia até podem estabilizar a Europa no curto prazo e ajudá-la a aguentar melhor os actuais ataques especulativos que são lançados sobre a dívida soberana de alguns países membros da Zona Euro, mas no longo prazo arriscam-se a provocar uma desestabilização. Apesar de o contágio financeiro estar actualmente limitado à interacção bancária, as medidas da União Europeia irão alargar os canais de contágio ao passarem a incluir os orçamentos públicos.

Na realidade, o primeiro passo na direcção de uma potencial cadeia de sucessivas insolvências soberanas na Europa já foi dado. O risco até pode estar actualmente limitado, mas a verdade é que irá aumentar se o novo Mecanismo Europeu de Estabilidade se converter num seguro de cobertura total contra os riscos de insolvência, sem que os credores partilhem o encargo dessa mesma dívida. Perante os previsíveis riscos da evolução demográfica, com a pressão suplementar que irá ser exercida pelo direito à reforma, talvez uma bomba-relógio tenha já começado a fazer tiquetaque.

Quando os políticos tentam combater as leis de ferro da economia, acabam sempre por perder. E desta vez não é diferente. No entanto, os políticos são avessos aos conselhos dos académicos. Muito frequentemente, preferem as piadas de mau gosto - mas quem ri por último, ri melhor.


Hans-Werner Sinn é professor de Economia e Finanças Públicas na Universidade de Munique e presidente do Instituto alemão Ifo.


© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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