Opinião
O empresário e a teoria económica
A importância da empresarialidade enquanto factor essencial da inovação e do crescimento económico tem vindo a ser amplamente reconhecida nos últimos dez anos.
Porém, a teoria económica ensinada nas nossas universidades, dominada quase em exclusivo pelo paradigma neoclássico, não integrou a figura do empresário nos seus princípios fundamentais. Esta ausência da empresarialidade deve-se, não apenas a razões ideológicas, mas sobretudo a dificuldades teóricas. Este facto acarreta graves lacunas na compreensão dos mecanismos básicos de funcionamento da economia.
As lacunas referidas não poderão ser obscurecidas pela recente proliferação de cadeiras, seminários, de cursos até, onde se tenta ensinar o empreendedorismo. Nesses programas, existentes agora num crescente número de faculdades, o empreendedorismo aparece como um ramo da gestão, sendo aí o conceito de gestor confundido, frequentemente, com o de empreendedor.
Um bom exercício pode ser a observação dos manuais de introdução à economia em uso nas universidades. Apesar da pujança deste mercado - e, não obstante a moda que passou a constituir a oferta de cursos sobre empreendedorismo - este é negligenciado, mal ou parcialmente tratado na generalidade dos manuais disponíveis, alguns deles de autoria de eminentes prémios Nobel da economia.
Embora seja certo que, de edição para edição, o tema tenha vindo a ganhar importância - na maioria dos casos integrado no capítulo sobre a repartição do rendimento - os manuais mais vendidos ainda não dedicam, em média, mais de 2 páginas ao tema, a que corresponde uns míseros 0,3% do espaço dos textos. A título de exemplo repare-se: o celebrado Principles of Economics de Mankiw, com a pretensão valorizar a primazia do mercado e de destronar o Economics de Samuelson, tido por demasiado keynesiano, dedica ¾ de página e 0,1% do espaço à empresarialidade. Até o meu manual preferido - o Economics: Principles and Policy de Baumol - não vai além de 0,5 % do espaço com 3,5 páginas.
Num mercado altamente padronizado, onde os manuais pouco diferem, quase parecendo cópias uns dos outros, no caso do tratamento deste tema, as variações são enormes. O empresário aparece de forma desgarrada, sem estatuto teórico definido e consensualmente aceite, em papéis tão diversos como: fonte de crescimento económico, agente de mudança, criador de emprego, agente de inovação, agente detentor do lucro, factor de produção, etc..
O tratamento insuficiente da empresarialidade nos manuais tem razões fundas, reflectindo a indefinição e incerteza que o conceito de empresário conhece no âmbito da ciência económica(1).
As melhores tentativas de integração da empresarialidade na teoria económica neoclássica procuram defini-la como um factor de produção, distinto dos recursos naturais, do capital e do trabalho. Mas estes esforços, apesar de continuados e antigos, não são bem sucedidos devido à dificuldade de medição das competências empresariais. A medição dos talentos empresariais seria essencial para calcular a produtividade marginal da empresarialidade e fechar assim o arco da teoria da formação dos rendimentos com a determinação do lucro. As tentativas nesta direcção fracassaram. A indefinição e a diversidade do tratamento do lucro e da empresarialidade nos manuais é disso um inquietante testemunho.
O insucesso da integração da empresarialidade na teoria neoclássica é preocupante, na medida em que produz derivas que conduzem à limitação da legitimidade do lucro e da figura do empresário.
As dificuldades começam logo na definição do conceito. Confunde-se, frequentemente, o empresário com o gestor, com o capitalista e com o proprietário em geral.
O conceito de empreendedorismo deve ser reservado para referência ao acto de criação e de reorganização de empresas, introdução de novos produtos, fontes de abastecimento, inovações em tecnologias, processos e métodos de gestão e, em geral, a assunção dos riscos necessários para tentar novas oportunidades. O conhecimento empresarial é o tipo de conhecimento mais elevado - o último conhecimento necessário para usar a informação disponível e garantir que as oportunidades tecnológicas se usem. A empresarialidade caracteriza-se pela natureza precária dos direitos legais: a remuneração do empresário, o lucro, é um resíduo, não sujeito ou protegido por qualquer direito contratual aos rendimentos.
Esta concepção do empresário é suficientemente antiga e rigorosa. Poderia esperar-se que já estivesse incorporada na teoria dominante. De facto, este conceito de empresarialidade tem uma história já longa, beneficiando de sucessivas contribuições desde 1921, com Knight(2) e a ideia de risco e incerteza, 1934 com Shumpeter(3) e a ideia de inovação e em 1973 com Kirzner(4) e a ideia de processo de descobrimento.
Enfrentam-se verdadeiras barreiras intelectuais, com origem na própria concepção do processo económico, concebido como um modelo matemático baseado na concorrência perfeita, no conhecimento completo e no movimento dos mercados para o equilíbrio. Estamos, no âmbito desta concepção, em presença de problemas de optimização com meios e fins conhecidos e dados situação imprópria para abordar a função empresarial. Este diagnóstico é já antigo e tem sido renovado recentemente(5), embora sem consequências sobre a construção dum corpo de conhecimentos consensual integrando a empresarialidade.
As dificuldades de integração da empresarialidade na teoria económica dominante não deixam de ter consequências sobre a formulação das políticas públicas de promoção do empreendedorismo. Aquela exige que se tenha uma compreensão adequada da relação entre a empresarialidade e o mercado dos factores de produção. Em particular, torna-se necessário considerar duas questões fundamentais:
1. A relação entre os benefícios esperados do lançamento de uma empresa e da obtenção de um trabalho assalariado.
2. A relação entre a criação de conhecimento e a aplicação do mesmo em actividades de inovação.
Na ausência de uma adequada resposta teórica no âmbito da teoria económica dominante resta-nos procurar orientação a partir da pesquisa empírica e de algumas das aproximações ao problema das teorias económicas alternativas e minoritárias.
(1) Esta insuficiência pode parecer a alguns inexistente devido ao facto dos desenvolvimentos da teoria da firma, investindo em conceitos como o de custos de transacção e outros ter vindo a ser incorporado com sucesso no corpo de conhecimentos básicos do economista. Porém, trata-se aqui apenas de teoria da firma cujo âmbito é a existência e as fronteiras da empresa. A ligação entre a teoria da empresa e da empresarialidade é inexistente.
(2) J. H. Knight, Risk, Uncertainty and Profit, Houghton and Mifflin, Boston, 1921.
(3) J. Shumpeter, The Theory of Economic Development, Harvard University Press, Cambridge, 1934.
(4) I. M. Kirzner, Competition and Entrepreneurship, University Chicago Press, Chicago, 1973.
(5) D. A. Harper, Entrepreneurship and the Market Process, Routledge, Londres, 1996.