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Museus a mais

Sempre é melhor abrir um Museu do que uma suinicultura. A catástrofe ambiental nunca é tão grande. Mas Portugal parece ter sido acometido de uma verdadeira fúria museológica, pois não passa semana que não se anuncie mais um.

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De arte, da rolha, do fascismo. Em geral culpa-se os Presidentes de Câmara. Depois dos esgotos e do campo de futebol vem logo a seguir a Casa Museu. Mas a coisa é mais profunda. Portugal tem cerca de mil e cem Museus a funcionar e prevista a criação de mais trezentos. A Espanha com quatro vezes mais habitantes tem mil e duzentos. Outro dado revelador. A França com sessenta e três milhões de habitantes tem 33 Museus Nacionais. Portugal tem 28. Temos claramente Museus a mais, ainda que a vasta maioria de Museu só tenha o nome.

Já aqui falei disto. Mas se volto ao assunto é porque o desvario não pára e alguns casos recentes merecem uma reflexão particular.

O movimento cívico «Não apaguem a memória» pretende que o estado preserve alguns lugares mais significativos da repressão do regime salazarista, as antigas sedes da PIDE em Lisboa e no Porto, o Aljube, Caxias e o forte de Peniche, de forma a perdurar a memória da ditadura e da resistência à ditadura. Não se percebe se a ideia é colocar uma simples placa nos locais, coisa razoável, ou criar em cada um desses sítios um núcleo museológico. Na medida em que a agitação é muita, já chegou à Assembleia da República e obteve o aval do Ministro Santos Silva presumo que se trate de algo substancial. Se assim for estamos perante mais uma iniciativa que promete consumir recursos sem nenhuma utilidade prática.

Tenho a maior simpatia por todos os que resistiram ao fascismo. Reconheço que existe uma tendência geral para o branqueamento desse período, ora desvalorizando o que de facto sucedeu, ora valorizando muitas das sinistras personalidades da época. Mas a ideia de que museus ou casas-museus podem contribuir para inverter esta realidade é uma enorme ilusão.

Desde logo o que irão conter esses espaços? Simulacros de sessões de tortura ao estilo dos museus de cera? Fotografias de resistentes alternadas com rostos dos facínoras da polícia secreta? Documentos avulso? Fichas da PIDE? Pequenos objectos pessoais? Estamos a falar de uma história de acontecimentos e não de uma história de objectos como os que enchem os Museus de arte ou ciência. Trata-se de factos, comportamentos e narrativas. Tudo coisas pouco apropriadas para uma exposição estimulante. Um Museu do fascismo português, para além de meia dúzia de fotos e umas quantas reproduções de panfletos, não tem nada para mostrar. A opressão e a coragem não fazem acervos. Pelo que os promotores destas ideias se arriscam a gerar conteúdos de uma tal insignificância que funcionarão como atenuantes do próprio regime fascista.

Não menos problemática é a gestão dos espaços. Já não considerando a inevitável disputa política e suas implicações nos próprios conteúdos, pois o período fascista visto por socialistas não é o mesmo do visto por comunistas, velhos hábitos levarão à criação de comissões, direcções e administrações, tudo a custar muito dinheiro para coisa pouca. Sabendo-se que os bilhetes, se existirem, não pagarão o ordenado do funcionário que os cobra, e conhecendo-se a dificuldade em conseguir patrocínios privados significativos, ainda para mais em matéria tão delicada, resta, mais uma vez, o dinheiro público. Mas que sentido faz o estado gastar dinheiro, e não será pouco, com uns quantos espaços onde ninguém irá e sem qualquer utilidade prática?

Loucura similar desenrola-se a respeito do Museu Salgueiro Maia. Também aqui os promotores imaginam que a dita estrutura poderá «contribuir para a afirmação de Santarém e da sua região, numa vertente histórico-cultural». Não vejo como. O que vão lá mostrar? Fotos do capitão de Abril em menino e crescido, a farda, a pistola preferida? Por muito que estime a personagem não é de crer que alguém se desloque a Santarém para ver um conjunto de banalidades. Nem se compreende como Santarém se pode projectar com uma iniciativa tão claramente provinciana.

Mais uma vez a esquerda, pois é ela que agita tais desatinos, perde tempo com assuntos menores e não trata daquilo que realmente importa. E mostra como em muitas matérias tem a cabeça cheia de confusões e conservadorismo. A história, rigorosa e séria, preserva-se da mesma maneira de sempre. Nas universidades, nos arquivos, com estudos e livros. E um bom exemplo disso é o arquivo Mário Soares. Já quem quer contar histórias recorre a romances, ao cinema e à televisão. Criar Museus é uma coisa demasiado séria, custa muito dinheiro e deve ter em conta o contexto cultural em que se insere. Hoje um Museu, digno desse nome, já não é simplesmente um amontoar de objectos e trivialidades. No muito particular contexto dos factos históricos, um Museu só se justifica se existir algo de bastante poderoso do ponto de vista simbólico ou imagético. As pessoas não se deslocam a Auschwitz para ver fotografias ou ler textos, mas para experimentar fisicamente a arquitectura macabra.

A ilusão de que estruturas museológicas podem resolver o problema do esquecimento tem raiz numa concepção obsoleta das mesmas. Onde o Museu ainda é visto como mausoléu e não como veículo dinâmico de distribuição de conhecimento. Vivemos num tempo em que as pessoas querem acima de tudo participar e experimentar. Hoje os Museus dignos desse nome ensinam e deslumbram. São interactivos e estão eles mesmos em constante mudança. E isso custa muito dinheiro.

Imaginar que uma casa velha com uma placa na porta e muita tralha no interior pode contribuir para a educação cívica das populações é não perceber nada da sociedade actual. Nem do que é um Museu. Se querem preservar a memória não façam museus, criem páginas na Internet, organizem bons arquivos, escrevam livros, façam filmes. E acima de tudo façam tudo isso por iniciativa própria e sem consumir mais recursos colectivos. A memória da luta contra o fascismo ficaria bem melhor servida se realizada com base nos valores porque tantos se bateram: a liberdade, a iniciativa e a criatividade.

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