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Menos Estado

É habitual os telejornais fecharem com leveza. Uma piadinha, um assunto menor, uma historieta qualquer. Certamente para desopilar depois de tanto cadáver e más notícias.

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É habitual os telejornais fecharem com leveza. Uma piadinha, um assunto menor, uma historieta qualquer. Certamente para desopilar depois de tanto cadáver e más notícias.

Daí não vem mal ao mundo, antes pelo contrário, e por vezes é mesmo nesse curto e derradeiro instante que se apresenta algo de realmente interessante. A semana passada um dos nossos canais, que não fixei, descobriu um assunto curioso. Sabia que não se pode dar um nome qualquer ao seu filho? E que o Estado elaborou uma lista com os nomes aceitáveis e conformes à moralidade pública? Eu próprio já o sabia porque quando nasceu o meu segundo filho queria chamar-lhe João K e isso não foi possível. Ao que parece K não é nome digno, ainda que exista um José K bastante famoso, mesmo se com um destino pouco agradável.

De qualquer modo mais do que uma homenagem a Kafka na altura pareceu-me que no futuro os bons nomes seriam curtos e imaginativos. As estrelas rock já o perceberam há muito tempo. Ora o Estado não pensa como eu. O que não estaria mal pois eu também não penso como o Estado. Acontece contudo que para além disso o Estado não só tem pouca disposição para debater ideias, como raramente perde uma oportunidade para me obrigar a fazer o que não quero ou impedir de fazer o que me apetece.

É claro que se pode argumentar que o Estado tem obrigação de defender o bem comum, a vida e segurança de todos os cidadãos e de, nessa lógica, impedir que alguém faça mal ou prejudique o seu semelhante e a sociedade em geral. As leis, as polícias, os tribunais, as prisões supostamente servem para isso. Mas que mal tem eu dar um nome qualquer ao meu filho? Quem pode sentir-se prejudicado com isso? A não ser talvez o próprio, embora isso seja do foro familiar e na verdade quantos serão aqueles que detestam o nome normalizado que lhes foi dado? Cabe na cabeça alguém chamar-se Isaltino?

Este caso, banal, mas que hoje se coloca com alguma acuidade pela presença de tantos estrangeiros entre nós e que se vêem impedidos de dar os nomes do seu reconhecimento aos filhos, só demonstra como apesar de tanta conversa sobre a democracia, a cidadania e a liberdade individual, vivemos ainda sobre um Estado autoritário que se intromete nos mais pequenos detalhes das nossas vidas, sem que se perceba qual a lógica ou interesse do exercício.

Veja-se, ainda que com consequências bastante mais nefastas do que a escolha de um nome, esta verdadeira sanha persecutória que criminaliza comportamentos individuais que em nada prejudicam a comunidade. São muitos os domínios onde é proibido fazer as coisas mais triviais. O consumo de drogas por exemplo. Desde logo a droga é uma constante nas sociedades humanas desde a pré-história. E hoje, toda a gente toma drogas por tudo e por nada, sejam elas materiais, medicamentos, mezinhas, bebidas e pastilhas de toda a espécie, ou imateriais, futebol, ideologia ou televisão.

Porque razão se há de criminalizar umas drogas e não outras. Com que base científica? Em nome de que superior interesse público se prende alguém simplesmente por gostar de fumar marijuana ou cheirar cocaína no recato da sua casa ou em companhia de amigos? Há quem goste de comer presunto, coisa que eu detesto. Ou beber bagaço, o que só o cheiro me dá vómitos. Mas, lá porque não aprecio, não advogo a proibição de tais hábitos. No máximo, nos casos mais sérios, como é o da caça ou das touradas por exemplo, é por via da persuasão que imagino ser possível um dia acabar com costumes tão bárbaros e obsoletos. Como aconteceu nos países mais civilizados.

E que dizer desta questão, sempre renovada e que já cansa, da criminalização do aborto? Estando a maioria de nós de acordo quanto à protecção da vida, só a ciência, e não a moral, o Estado ou a religião, poderá dizer quando começa realmente a vida humana, pois a vida essa já está no óvulo e no espermatozóide, nunca sendo demais recordar que uma bactéria também é vida e muitas delas são até fundamentais para a nossa existência e bem estar. Mesmo sabendo-se que o conhecimento está em constante evolução e que a noção de vida é hoje muito distinta do que foi no passado e será certamente no futuro, é à ciência que cabe definir este tipo de parâmetros. De forma provisória mas operativa no contexto de cada momento da civilização.

Que o Estado deva ser ético, na medida em que deve ter como objectivo praticar o maior bem e impedir o mal social, está certo. Mas o Estado não deve pretender impor uma moral oficial, e vá-se lá saber quem decide qual é, em particular no domínio da esfera privada e da liberdade individual. Por princípio tudo aquilo que não prejudique directa e concretamente outrém deve ser permitido.

Em suma, o Estado mete-se em demasia onde não é chamado. Com isso prejudicando todos. Aliás muitos dos problemas que afligem as sociedades contemporâneas deriva da excessiva intromissão do Estado. Na economia, na vida privada, nas relações sociais, na cultura e em muitos aspectos da organização social, a ingerência do Estado é muitas das vezes um sério obstáculo à evolução da sociedade e acima de tudo um atentado às liberdades cívicas e individuais.

Por fim, e para benefício da claridade, quem escreve estas linhas não é neoliberal. Pelo contrário. A esquerda que aprecia, acima de todas as coisas, a liberdade também quer menos Estado.

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