Opinião
27 de Abril de 2017 às 11:24
Kafka e os algoritmos
Vivemos, sem dúvida, numa sociedade que enfrenta uma rutura tecnológica, económica, social e jurídica que temos muita dificuldade em conceber, a tal ponto está a ser incontrolável.
No final da sua vida, Franz Kafka, muito doente, já não era o excelente in house lawyer que fora e procurava sobreviver da remuneração dos seus direitos de autor. Vivia em Berlim e tomava o mesmo elétrico que Vera Nabokov, a qual sempre reparava naquele jovem magro e delicado. A figura maior de Praga também contribuiu para que esta seja a cidade metáfora do corpo, e do devir dos tempos. A Metamorfose, o homem que se torna insecto, o gigante Golem do imaginário judeu, a criação antropomórfica, nascida, por magia, de matéria inanimada, o jovem estudante de Direito Jan Palach, imolando o seu corpo na resistência ao invasor do Pacto de Varsóvia e um outro corpo, pós humano, o robot de Karel Kapec, criado numa peça de teatro, em Praga, no ano de 1921. O mundo em que vivemos terá sido, então, prefigurado por estes dois contemporâneos na antiga capital da Bohemia.
A Propriedade Intelectual em que Kafka buscava, angustiado, o seu sustento, sempre foi, assente na inteligência biológica, nas figuras do autor ou do inventor, bem como de alguns outros "auxiliares", na fase de concessão e de julgamento. Mas neste mundo em que já se passaram as fronteiras do humano, os criadores podem ficar no seu limiar e, do mesmo passo, tornar as leis que os regem algo inúteis. As máquinas já não nos auxiliam, apenas, podem vir a substituir-nos. Se a máquina, devidamente adestrada, cria e inventa, sozinha, poderão os direitos continuar a ser inseridos na ficção da esfera jurídica humana? Quem serão os titulares das obras geradas por computador?
No presente, vive-se uma efervescência no segmento das patentes de inteligência artificial. Mas já se disse que, muito em breve, o exame das invenções patenteáveis será todo feito por inteligência artificial, prescindindo dos examinadores humanos. Na verdade, a patenteabilidade de uma invenção depende da verificação da atividade inventiva, isto é, se, para um perito, na especialidade, não resultar de uma maneira evidente do estado da técnica. Ora, como cingir esta figura de um perito na era do deep learning? Uma noção muito percetível, embora, na prática, por vezes, se complique, é a das obras em colaboração. Até agora era mais ou menos fácil, John Lennon e Paul Mc Cartney, René Goscinny e Albert Uderzo, Gilbert e George, Ira e George Gershwin, Brecht e Kurt Weill. O que acontecerá quando a obra resultar da interação entre um humano e o seu parceiro IA e este, por exemplo, for "empregado" de uma outra empresa? A própria classe 9 da célebre classificação de Nice, quanto às marcas, acaba de se abrir a mais uma
figura, robots humanoides com inteligência artificial. Se o disséssemos há poucos anos, pensariam que estávamos a falar de uma obra de Phillip K. Dick.
Vivemos, sem dúvida, numa sociedade que enfrenta uma rutura tecnológica, económica, social e jurídica que temos muita dificuldade em conceber, a tal ponto está a ser incontrolável. Leia-se o que dizem os investigadores do Google, também eles perplexos.
Franz Kafka era um jurista especializado em seguros e deu muitos pareceres, disponíveis em colectâneas recentes, sobre cobertura de riscos na introdução de máquinas na agricultura, condições de trabalho em fábricas de brinquedos ou as novas e complexas condições sociais, e de informação técnica, advindas da democratização do automóvel. Ou seja, reflexões jurídicas sobre o nexo entre o progresso tecnológico e os concomitantes desenvolvimentos na criação legislativa.
Kafka litigou muito em vários tribunais de Praga. Os seus admiradores podem, aliás, fazer um roteiro jurídico da sua vida e obra, a Faculdade de Direito onde estudou, as várias companhias de seguros onde trabalhou.
Quanto aos tribunais, estão lá, ainda, os edifícios. Os tribunais é que não. Tornaram-se obsoletos, inúteis, para essa função, já nada recorda o quotidiano de um órgão judiciário como os nossos que, em muitos sentidos, são contemporâneos de Kafka.
A inutilidade e a obsolescência são fantasmas sempre presentes na Vida do Direito. Muito em breve, mais breve do que se pensa, teremos alguns mais no nosso parque arqueológico.
Terá o jovem Franz assistido à estreia da peça R. U.R. (Rossum's Universal Robots) ? Ao que parece gostava imenso de teatro.
Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
A Propriedade Intelectual em que Kafka buscava, angustiado, o seu sustento, sempre foi, assente na inteligência biológica, nas figuras do autor ou do inventor, bem como de alguns outros "auxiliares", na fase de concessão e de julgamento. Mas neste mundo em que já se passaram as fronteiras do humano, os criadores podem ficar no seu limiar e, do mesmo passo, tornar as leis que os regem algo inúteis. As máquinas já não nos auxiliam, apenas, podem vir a substituir-nos. Se a máquina, devidamente adestrada, cria e inventa, sozinha, poderão os direitos continuar a ser inseridos na ficção da esfera jurídica humana? Quem serão os titulares das obras geradas por computador?
figura, robots humanoides com inteligência artificial. Se o disséssemos há poucos anos, pensariam que estávamos a falar de uma obra de Phillip K. Dick.
Vivemos, sem dúvida, numa sociedade que enfrenta uma rutura tecnológica, económica, social e jurídica que temos muita dificuldade em conceber, a tal ponto está a ser incontrolável. Leia-se o que dizem os investigadores do Google, também eles perplexos.
Franz Kafka era um jurista especializado em seguros e deu muitos pareceres, disponíveis em colectâneas recentes, sobre cobertura de riscos na introdução de máquinas na agricultura, condições de trabalho em fábricas de brinquedos ou as novas e complexas condições sociais, e de informação técnica, advindas da democratização do automóvel. Ou seja, reflexões jurídicas sobre o nexo entre o progresso tecnológico e os concomitantes desenvolvimentos na criação legislativa.
Kafka litigou muito em vários tribunais de Praga. Os seus admiradores podem, aliás, fazer um roteiro jurídico da sua vida e obra, a Faculdade de Direito onde estudou, as várias companhias de seguros onde trabalhou.
Quanto aos tribunais, estão lá, ainda, os edifícios. Os tribunais é que não. Tornaram-se obsoletos, inúteis, para essa função, já nada recorda o quotidiano de um órgão judiciário como os nossos que, em muitos sentidos, são contemporâneos de Kafka.
A inutilidade e a obsolescência são fantasmas sempre presentes na Vida do Direito. Muito em breve, mais breve do que se pensa, teremos alguns mais no nosso parque arqueológico.
Terá o jovem Franz assistido à estreia da peça R. U.R. (Rossum's Universal Robots) ? Ao que parece gostava imenso de teatro.
Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.
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