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Grão a grão

A compressão das formalidades empresariais, com franqueza! Que diferença faz ter existência legal ao fim de um dia ou de três meses? Quem está com pressa, porque não opta pelo regime informal?

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A língua portuguesa é certamente uma das mais ricas em manifestações de desdém e inveja. «Assim também eu!», «Grande coisa!», «É só fumaça!», são algumas das expressões que povoam o verbo lusitano a propósito de toda e qualquer realização alheia. Pobres, pequenos e atávicos, os portugueses habituaram-se a desconfiar de quem faz. Ora minimizam os feitos, ora reclamam por soluções globais, redentoras e revolucionárias, daquelas que costumamos ouvir da boca dos participantes nos fóruns radiofónicos e televisivos. O Governo quer reduzir as férias dos juízes (além de outras medidas de simplificação processual)? Não resolve nada e só cria mais um conflito. Pretende acabar com o monopólio das farmácias? Idem. Constituir empresas num só dia e criar um cartão do cidadão? Pff... Decididamente, as hostes só se deixam entusiasmar com «grandes» reformas.

Porque não se avança, de peito aberto, para o big bang judiciário reclamado por (quase) todos? Sabendo-se da importância de uma boa faísca para o sucesso revolucionário, haveria que escolher cuidadosamente o primeiro alvo no terreno. A malha jurídica, essa não. É verdade que o sistema é demasiado garantista, todos o reconhecem, mas os advogados têm uma noção diferente de garantismo. Para eles, o combate às práticas dilatórias não pode pôr em causa os direitos. E os direitos não vivem sem advogados, naturalmente. Razão mais do que suficiente para se evitar esta frente de batalha.

Talvez os tribunais? Afinal, todos concordam que são lentos, que se envolvem em lutas de competências estéreis e que não primam pela eficiência processual e administrativa. Pois sim, mas e os direitos? E a tranquilidade necessária para a produção de belas obras literárias, como são as sentenças em Portugal? Não pensem os mais tecnólogos que a informática resolve, porque a info-exclusão não se resolve em três tempos. Passaria pela cabeça de alguém obrigar os pobres dos juízes à utilização intensiva de computadores e meios electrónicos? Só com uma nova Revolução Cultural e os tempos não estão ainda maduros para isso. Não, teríamos de encontrar outro alvo. Proponho os prisioneiros.

Na saúde, arde igual fervor revolucionário. A ala bolchevique defende a privatização de tudo o que não se resuma ao conceito de Estado mínimo e às suas desinteressantes obrigações de saúde pública. A ala menchevique é mais contemporizadora com o legado histórico, embora nutrindo uma secreta devoção pelo radicalismo selectivo da experiência britânica. As restantes facções são ultra-minoritárias. Perante um tal cenário de unidade, porquê iniciar as hostilidades na frente boticária? Acaso as farmácias são insuficientes, trabalham mal, apresentam dívidas ao fisco? Pelo contrário, é o sector mais cumpridor do rectângulo, um exemplo notável de competitividade, ética e valorização accionista. Procuremos outro alvo. Há os médicos, os administradores hospitalares, os laboratórios e um punhado de grupos de menor expressão. Mas francamente, fará sentido guerrear aqueles que nos tratam da saúde? E se viermos a precisar deles mais tarde? Não, também não é por aqui que devemos conduzir a revolução. O segredo está em atacar o lado mais vulnerável do sistema - os doentes.

E o que dizer das medidas anunciadas pelo governo na terça-feira - cartão do cidadão, documento único automóvel e constituição formal de empresas num só dia - quando está tudo por fazer no domínio da modernização administrativa? Que diabo de reforma é esta? Que me interessa o cartão único do cidadão quando já me habituei ao cartão fiscal, ao cartão de eleitor, ao de utente de serviços de saúde, ao da ADSE, ao da Segurança Social e mais uns quantos que enchem o porta-cartões que me ofereceram no Natal? Quanto ao BI, deixei de me preocupar com ele há dois anos. Perdi-o por não caber em nenhuma carteira de formato normalizado e nunca mais o substituí.

E a compressão das formalidades empresariais, com franqueza! Que diferença faz ter existência legal ao fim de um dia ou de três meses? Quem está com pressa, porque não opta pelo regime informal? Quem vai pagar as horas extras que os valorosos funcionários das conservatórias e dos notários vão ter de realizar para cumprir esse inútil desígnio político, eles que já tanto se esforçam para sustentar as famílias com os seus magros emolumentos?

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