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Sara Rocha - Activista autista e escritora 29 de Janeiro de 2021 às 20:28

Eu sou "uma autista do pior", com orgulho

O meu nome é Sara Rocha, tenho 30 anos, e eu sou "uma autista do pior". No entanto, garanto-vos que eu não direi nenhuma estupidez neste artigo.

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Esta semana, foi-me enviado um artigo de Camilo Lourenço a chamar a ministra da Saúde de autista, e no qual diz a seguinte frase: "Só um autista do pior é capaz de dizer uma estupidez destas tendo em conta a realidade fria dos números."

 

Não é de todo a primeira vez que este tipo de capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência) acontece, sendo que há uns meses escrevi um artigo sobre a própria ministra da Saúde a utilizar a expressão, mas existe aqui uma diferença substancial que foi: ela pediu honestas desculpas, e disponibilizou-se a conversar, assim como nunca utilizar a expressão novamente.

 

Apesar de ter havido uma espécie de pedido de desculpa por Camilo Lourenço, este foi acompanhado com "a expressão foi utilizada no sentido popular, não médico", e que "conheço muito bem o autismo, e naturalmente, nunca usaria a expressão para insultar ninguém". Eu duvido de que conheça, porque os autistas não existem apenas num sentido médico, e o que se escreveu, por muito que seja colado a cuspo como não insultuoso, foi preconceituoso. Não existe qualquer base popular em que seja aceitável utilizar o ser autista para comparar a alguém inferior. E confesso que esta insistência na retórica de: o problema não sou eu, és tu, não ajuda.

 

Se utilizassem raça ou uma orientação sexual para insultar ou demonstrar algo inferior ou que diz algo estúpido, seria aceite globalmente como preconceituoso. No entanto, por alguma razão, quando são os autistas, é tido como "não tem intenção de ser insultuoso" ou que é uma expressão. Não, eu não sou uma expressão para ser utilizada quando querem falar de algo que é inferior, nem muito menos estúpido. De estúpida tenho pouco, assim como todos os outros autistas que conheço.

 

Na verdade, o autismo não é uma doença, é uma neurodiversidade e uma condição de neurodesenvolvimento. Isto significa que o nosso cérebro é diferente, e não pior. Os autistas são hipercontactados com os sentidos, e sentimos o mundo de uma forma diferente das pessoas não autistas. A ideia errada de que somos alheados vem precisamente por sentirmos o mundo de forma tão intensa, que nos sobrecarrega.

 

Podem pensar que reclamar de uma palavra ser utilizada como expressão é exagero e ser politicamente correcto, mas este tipo de expressão não é só ofensivo, mas é perigoso. A razão de eu ter recebido o diagnóstico apenas ao sair de Portugal é pelo estigma e pela falta de conhecimento do que realmente é o autismo em Portugal. Porque eu não "pareço autista", o que significa que eu não encaixo na ideia preconcebida que pessoas desinformadas como o Sr. Camilo acham que ser autista é. Estas ideias são retiradas precisamente por este tipo de expressões serem utilizadas em jornais e televisões a nível nacional. Apesar de haver apoio desenvolvido agora para crianças, que mesmo assim precisa de melhorias, os adultos são esquecidos ou nem diagnosticados. A taxa de tentativa de suicídio nos autistas é nove vezes superior à da população em geral. Ao contrário do que pode pensar (infelizmente outro exemplo de preconceito), este suicídio não é por sermos autistas e estarmos depressivos por termos esta condição, mas por a sociedade não nos aceitar como autistas e não fazer qualquer esforço em nos aceitar e incluir. Estes dados foram retirados de dados de outros países, visto que penso não ter havido nenhuma investigação sobre este assunto em Portugal.

 

A nível global, as maiores empresas do mundo começam a reconhecer a beleza dos cérebros neurodiversos e a fazer programas de contratação de autistas, que já fizeram muito dinheiro para estas empresas pelos seus dons e pontos fortes, quando existem pequenas acomodações para as nossas dificuldades. No entanto, em Portugal, ainda somos utilizados para comparações sem sentido, que levam empregadores, que não fazem ideia do que o autismo é, a pensar que temos menos capacidades, e que não vale a pena serem contratados. E daí sermos as pessoas com deficiência com menos empregabilidade, de todas as que existem (outra vez, estudos fora do país).

 

Isto tudo para dizer que as expressões capacitistas, por muito que sejam sem intenção, têm um impacto muito real e perigoso na vida de uma minoria que já é isolada e estigmatizada neste país. A maior estupidez disto tudo é continuarem a ostracizar uma condição que, se incluída, poderia trazer tanto para o país.

  

Sara Rocha é licenciada em Análises Clínicas e Saúde Pública e mestre em Gestão e Economia dos Serviços de Saúde. Trabalha como Data Manager na Escola de Medicina da Universidade de Cambridge, na área de investigação cardiovascular. Equality Champion da Escola de Medicina da Universidade de Cambridge. Pertence ao Disability Caucus do partido político Women Equality Party no Reino Unido. Presidente e co-fundadora da Associação Portuguesa Voz do Autista em Portugal.

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