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22 de Janeiro de 2007 às 13:59

Crónica para lembrar um amigo

‘A Morte de Um Caixeiro Viajante’ (Death of a Salesman) é uma peça teatral da autoria de Arthur Miller (1915-2005) que estreou em 1949 em New York, sob a direcção de Elia Kazan, e esteve em cena ao longo de setecentas e quarenta e duas sessões.

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A peça valeu a Arthur Miller no ano de 1949 o prémio Pulitzer, o prémio da Crítica Teatral de New York entre outras distinções e tornou-se um clássico do teatro que se estendeu muito para além das fronteiras culturais norte-americanas, para todo o mundo ocidental. Segundo o autor, a peça foi escrita em apenas seis semanas e ‘era somente uma história acerca da vida de um vendedor, com os seus problemas de adaptação à sociedade industrializada pós Segunda Guerra Mundial, à mudança social e às dificuldades com que se deparava na família’.

Depois, o personagem central da peça, o vendedor Willy Loman, tornou-se um quase-mito, um exemplo de convergência e contradição, em torno de quem se colocavam questões de lealdade e sacrifício, de sucesso e insucesso, na vida de trabalho, nos negócios e no ambiente familiar. Ao caixeiro-viajante sem salário, sem emprego, sem clientes, sem comissões, sem apoio dos filhos e sem esperança, resta o suicídio para poder deixar
de herança um pecúlio em dinheiro. As peças de Miller localizam-se geralmente na família – lá, onde as questões importantes da vida acontecem – e têm a marca de uma consciência social publicamente assumida nos anos difíceis do ‘macarthismo’, quando o estado americano perseguia os intelectuais de esquerda com suspeitas de espionagem a favor da URSS, à época o inimigo principal, limitando-lhes os direitos de expressão, cidadania
e intervenção social.

Um vendedor, é por definição um herói. Na empresa para a qual trabalha – que o premeia e celebra, que lhe paga as despesas e que lhe proporciona sentimentos profundos de motivação e pertença. Junto dos clientes – que trata como amigos especiais, companheiros de muitos e bons momentos, objecto das maiores atenções. Na sociedade em que se movimenta – com brilho, optimismo, conformidade e conservantismo quanto baste. Na família – que lhe aceita com naturalidade as ausências, os compromissos sociais ou os horários inimagináveis, e que dele espera o máximo. E, finalmente, também perante si próprio – o modo como se integra nos grupos, o cuidado com a própria imagem, a motivação para atingir e ultrapassar objectivos, o desejo de ganhar e ser reconhecido.

Grandes empresas (como a IBM ou a Xerox) sempre trataram os seus quadros comerciais como pessoas importantes, publicitando-lhes os nomes, dentro e fora da empresa, e premiando-os de forma distintiva. O pressuposto subjacente (que está absolutamente certo) é de que a empresa só existe se se realizarem vendas e se cobrarem as facturas. Sem estruturas comerciais a funcionarem bem não existe negócio algum, de coisa nenhuma.

O caixeiro-viajante da peça de Arthur Miller fez – mais por força do acaso do que por desígnio pessoal – com heroísmo e naturalidade, o percurso de sucesso e reconhecimento que no domínio da sua profissão lhe competia. Depois, com o pós-guerra, o mundo dele mudou. Quando os soldados americanos voltaram a casa, os jovens talentosos eram muitos, para todas as profissões. O mercado de trabalho ocupado pelas mulheres teve que criar condições para absorver os novos que chegavam. Substituir os velhos era inevitável. A estrutura das famílias viu-se alterada pelas circunstâncias da vida. E as relações entre pais e filhos ficaram distantes, porque o desenvolvimento afastava os jovens de casa, em busca de oportunidades. Willy Loman não teve capacidade para perceber tantos e tão complexos movimentos a tempo. Também não teve condições para mudar, quando começou a juntar as coisas e a entender. Não teve família que o ajudasse, não teve chefias que se preocupassem com a sua reintegração em funções administrativas, não teve segurança social em que se amparasse, não teve médico, nem padre, nem amigos que lhe valessem. Para ele só ficaram culpas – de perder os clientes, de se sentir velho e cansado, de não se motivar mais para os objectivos que lhe propunham, de não saber como viver com um salário variável. O fascínio desta obra teatral está na sua capacidade de revelação da face oculta – essencialmente crua e feia – da vida do vendedor, herói por obrigação.

A ideia de ‘reforma’ que actualmente se usa para referir as urgências na economia e na sociedade – e que remete para processos adaptativos, com efeitos esbatidos no tempo e vantagens a prazo – é uma invenção semântica, que serve aos políticos para ocultarem os custos reais imediatos. Constantemente observamos em volta "caixeiros-viajantes" sem clientes e sem amanhã, para quem as empresas se fecharam.

Sem precisarmos de invocar o final dramático da obra de Miller, importa-nos, sim, acompanhar os movimentos e perceber o sentido da vida actual. Inverter o curso do que nos é adverso é urgente e necessário.

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