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Opinião
Carlos Saraiva Alves csalves@isg.pt 29 de Maio de 2007 às 13:59

A propósito de fusões e aquisições

O nome de Nicolau Maquiavel é, na linguagem vulgar, muitas vezes associado ao paradigma da duplicidade, do engano, da manipulação e da ausência de escrúpulos, para atingir objectivos e controlar o poder. Figura incontornável da história do pensamento euro

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Entre os finais do século XV e o primeiro terço do século XVI, destacam-se três grandes pensadores europeus: Desiderius Erasmus (Roterdão, 1466-1536), Thomas More (Londres, 1478-1535) e Nicolau Maquiavel (Florença, 1469-1527). Os dois primeiros pensaram e escreveram sobre as questões espirituais e as relações dos homens, entre si e com Deus. O último escreveu sobre as questões dos homens face ao poder, num contexto político e social muito específico, como era a Itália do seu tempo.

O Renascimento é uma época de grande transformação da Europa no sentido do desenvolvimento cultural, científico, económico e político – e também de movimentos sociais profundos e de lutas violentas e continuadas, com perda definitiva de influência dos senhores feudais e centralização do poder nos reis e príncipes, apoiados nos banqueiros judeus, nos comerciantes, nas corporações de artes e ofícios e nos homens de ciência e saber, com o aval político de Roma, num quadro de alianças e interesses. Em Portugal, tais acontecimentos são particularmente notáveis nos reinados de D.João II e D.Manuel I. A igreja católica exercia o seu poder espiritual sob a égide da Inquisição, acumulando riqueza e benefícios temporais. Os papas romanos governavam como reis poderosos, mantinham exércitos, faziam guerras e exerciam grande influência política no centro da Europa e no Mediterrâneo.

Maquiavel foi um pensador de visão ampla e senso político e administrativo notáveis. Pertencia a uma família antiga e distinta, ocupou altos cargos civis e militares em Florença. Desempenhou missões diplomáticas no estrangeiro e tinha prática de relações internacionais. Conheceu a prisão e o desterro por razões políticas e foi nessa situação que escreveu "O Príncipe". Inspirado na figura de César Bórgia e dedicado a Lourenço de Médicis, o livro trata do exercício do poder e da sua manutenção segura, da administração sábia e da influência necessária nos domínios que se detém e nos que se conquistam. Não é um escrito moral sobre "o que deve ser" a governação – é um guia para a vida de quem governa, como ela de facto é.

No livro o conselheiro explica – revela ao seu príncipe – como usar a astúcia e cultivar a prudência e o calculismo, como reconhecer e lidar com os amigos e com os súbditos, como proceder com os inimigos, como controlar acontecimentos para que se tornem favoráveis, como trabalhar as alianças e como manter e reforçar as posições de poder.

Embora o texto de Maquiavel possa (ainda hoje) ter diversas interpretações, o autor tornou-se réu de crime sem perdão – por ter revelado práticas de exercício do poder até aí resguardadas de avaliações indiscretas, quase no domínio do sagrado.

As semelhanças entre a gestão de empresas e a direcção de negócios políticos são muitas. Em tempo de "fusões e aquisições", reler "O Príncipe" é um exercício útil e recomendável. Pelo interesse que lhes encontrámos, transcrevemos algumas passagens.

Para administrar conquistas de povos com cultura semelhante: "... basta extinguir a linhagem do príncipe que os governava (...) se lhes forem respeitadas as leis, impostos e costumes, os novos súbditos e estados formarão um só com o antigo (...) e as mudanças devem fazer-se lentamente ou não se fazer de todo".

Quando o conquistador quer impor regras e mudar depressa demais: "... passa a ter como inimigos aqueles a quem a antiga ordem aproveitava e como defensores alguns, mas poucos, dos que podem lucrar com a mudança".

Entre ser amado e temido: "... amizades conquistam-se com o coração e não pelo dinheiro, porque essas nunca estão disponíveis quando precisamos (...) o ideal é ser-se tão amado quanto temido e se ambas as coisas não forem possíveis, que se seja então antes temido do que amado".

Para administrar conquistas de nações com cultura diferente: "... quando os que se conquistam estão habituados à liberdade e têm as suas leis, três hipóteses são possíveis: ocupá-los e destruí-los, ir viver para lá ou mandar representantes peões e armas, para usufruir do que se conquistou, ou então deixá-los viver como desejam, cobrando tributos, nomeando representantes que ganhem a sua aceitação".

Sobre mudanças e notícias: "... se as crueldades forem inevitáveis, então que se dêem as más notícias todas de uma vez só (...) e as boas notícias que sejam dadas devagar para melhor se saborearem".

Sobre o poder: "... é preciso que os que mandam sejam influentes e desejem exercer o poder (...) a cooperação dos outros consegue-se quando se tem o poder, mantém-se e amplia-se quando se sabe usar da influência".

Portugal no início do século XXI não tem relação alguma com a Itália dividida entre reinos e repúblicas e socialmente instável, dos séculos XV e XVI. O pensamento de Nicolau Maquiavel tem na cultura das nações modernas lugar de destaque. O seu conhecimento constitui certamente um exercício cultural estimulante e compensador.

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