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23 de Dezembro de 2003 às 12:34

Consensos e Opções

Por estranho que pareça, foi essa inevitabilidade que levou a que, três orçamentos depois, o défice, dramatizado até à exaustão, esteja bem pior que no início, apesar do novo “sound bite” a respeito da melhoria do “défice estrutural”.

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Quando o actual governo entrou em funções, a prioridade ao ajustamento orçamental não era uma opção política: era uma necessidade indesmentível.

Por estranho que pareça, foi essa inevitabilidade que levou a que, três orçamentos depois, o défice, dramatizado até à exaustão, esteja bem pior que no início, apesar do novo “sound bite” a respeito da melhoria do “défice estrutural”.

Esta apenas se deve à engenharia contabilística e à degradação da situação económica: quem nos dera voltar a ter um défice estrutural pior que o défice observado, mostrando que, finalmente, a economia estaria a crescer acima do seu potencial e, aí sim, a exigir medidas de restrição orçamental.

O facto de o governo não ter escolha com respeito à necessidade de corrigir os problemas orçamentais em 2002 não significava que não a tivesse quanto ao modo de o conseguir. Fundamentalmente podia escolher entre privilegiar a gestão pura e simples do ciclo político e apostar na reforma do processo orçamental, a questão de fundo onde radica a instabilidade que de há muito caracteriza a economia portuguesa e que apenas os choques externos conseguem disfarçar.

Ao escolher a primeira opção, o governo teve de tomar um conjunto de medidas restritivas, de grande impacto e visibilidade, que, embora agravassem de imediato a situação conjuntural, fossem facilmente reversíveis quando o ciclo político o aconselhasse.

A vantagem desta opção consistia em permitir situar bem as responsabilidades pelas medidas impopulares, tomadas em nome da correcção imediata do défice herdado. A seu favor estava ainda o facto de poder apoiar-se nas exigências do Pacto de Estabilidade e na ameaça de sanções que supostamente pesava sobre Portugal face ao seu incumprimento.

Os grandes riscos desta táctica resultavam de não ser acompanhada de uma estratégia económica forte, apoiando-se apenas na aposta numa rápida retoma internacional, que compensaria o efeito recessivo das medidas internas, contribuindo para provar a tese de que a “redução do peso do Estado” era o factor-chave do desenvolvimento da economia, mesmo que inicialmente não passasse de retórica.

Nem a conjuntura americana, nem a retoma na Europa ou a competitividade da economia portuguesa permitiam desprezar tais riscos que, a concretizarem-se, revelariam a grande fraqueza da opção escolhida: o défice orçamental, em vez de se corrigir, agravar-se-ia, face à recessão económica que a própria política aprofundara.

Foi o que aconteceu em 2003 e, a partir daí, o governo caiu no puro domínio das contradições: desde “perdoar” as sanções à Alemanha e à França, mantendo a ameaça para Portugal, até pedir à oposição consenso para uma política que visava aniquilá-la, passando pelo argumento de que a política orçamental nem sequer foi restritiva, dado que se apoiou nas receitas extraordinárias.

Quanto à proclamada redução do peso do Estado, o que sobretudo se observa é a cada vez menor transparência da sua intervenção (bem ilustrada pelo caso dos hospitais-empresa, que deviam constituir o grande exemplo de um novo modelo de gestão) e a crescente politização de uma administração pública que já tinha como um dos seus principais problemas a falta de autonomia de gestão e o excesso de dependência em relação aos políticos e aos grupos de pressão sócio-profissionais.

Em que teria então consistido a alternativa? Em primeiro lugar, em reconhecer, a nível interno, a necessidade de um forte consenso entre os partidos do centro do espectro político com vista a alterar radicalmente o processo orçamental e a promiscuidade entre um sector público cada vez mais fraco e um sector privado que cada vez mais depende dele.

As regras a que se subordina o Orçamento do Estado têm nisto um papel fundamental dado que são elas que permitem manter uma gestão macroeconómica subordinada à conjuntura política, aprofundando aquelas promiscuidades e dependências.

Uma espécie de maldição lançada sobre o país resulta da noção de que as despesas públicas podem sempre crescer e de que o Estado consegue sempre proteger a economia, estimular os sectores que dele dependem (e de quem ele depende) e arranjar algures financiamento para tudo isto. Um desafio complexo, mas a que vale a pena tentar responder, é o de impor limites institucionais à capacidade de fazer crescer as despesas públicas, mas limites que sejam definidos de forma racional, coerentes com a situação da economia e capazes de restringir a discricionaridade eleitoralista e de restituir eficácia ao papel do Estado, prescindindo da retórica do “monstro”.

O contexto europeu é particularmente favorável à instituição de mecanismos desse tipo, desde que nos deixemos de dogmas, quer eles venham de doutrinas bushistas, ou de um Pacto de Estabilidade mal gerido. Nos países da UE que os criaram, as economias mantêm-se em crescimento, o desemprego em queda, os salários em alta e... os orçamentos equilibrados. Teria certamente sido preferível conquistarmos o apoio da Comissão Europeia para uma reforma deste tipo, a alcançar a sua benevolência com respeito a estratagemas contabilísticos.

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