Opinião
Armas, medicamentos e mercados financeiros
A crise dos empréstimos de alto risco (“subprime”) demonstrou, uma vez mais, como é difícil “domesticar” o sistema financeiro, uma indústria que é a tábua de salvação das economias modernas e, ao mesmo tempo, a sua mais séria ameaça. Se bem que isto não s
Essa estabilidade reflectiu um simples “quid pro quo”: a regulação em troca da liberdade de operar. Os governos impuseram à banca comercial uma regulação prudencial e, em troca, ofereceram a provisão pública de garantias de depósitos e assumiram funções de credor em última instância. Os mercados de capitais foram sujeitos a exigências de divulgação de informação e de transparência.
No entanto, a desregulamentação financeira da década de 80 conduziu-nos a território desconhecido. A desregulamentação prometeu gerar inovações financeiras que expandiriam o acesso ao crédito, permitiriam uma maior diversificação de carteira e a alocação do risco aos que melhor o conseguissem suportar. A supervisão e a regulação poderiam ser um obstáculo, argumentavam os liberalizadores, e os governos possivelmente não acompanhariam as mudanças.
Mas a actual crise fez toda a diferença. Agora percebermos que mesmo os intervenientes de mercado mais esclarecidos não tinham muitas pistas sobre os novos instrumentos financeiros que tinham surgido e ninguém duvida que a indústria financeira precisa de uma reformulação. Mas o que precisa, exactamente, de ser feito? Os economistas que se têm debruçado sobre estes assuntos tendem a encaixar-se em três grupos.
Em primeiro lugar, temos os libertários, para quem tudo o que interfira naquilo que acontece entre dois adultos de comum acordo é susceptível de constituir crime. Se você está a vender um pedaço de papel que eu quero comprar, é minha responsabilidade saber aquilo que estou a comprar e estar consciente de quaisquer possíveis consequências adversas. Se a compra que fizer me prejudicar, só tenho que me culpar a mim. Não posso pedir ajuda financeira ao governo.
Os não-libertários, por seu lado, reconhecem a falha fatal deste argumento: o colapso financeiro acarreta aquilo a que os economistas chamam de “risco sistémico”– todos pagam um preço. Conforme a operação de salvamento do Bear Stearns demonstra, o governo pode precisar de socorrer financeiramente instituições privadas para impedir um movimento de pânico que provoque consequências muito piores. Assim, muitas instituições financeiras, especialmente as de maior dimensão, operam com uma garantia governamental implícita. Isto justifica a regulação governamental em relação às práticas de concessão de crédito e de investimento.
Por esta razão, os economistas dos segundo e terceiro grupos – chamemos-lhes entusiastas financeiros e cépticos financeiros – são mais intervencionistas. Mas a amplitude da intervenção que eles toleram difere, reflectindo as suas diferentes perspectivas em relação ao grau de disfuncionamento da abordagem vigente à supervisão e à regulação prudencial.
Os entusiastas financeiros tendem a encarar cada crise como uma oportunidade de aprendizagem. Se bem que a regulação prudencial e a supervisão possam nunca ser perfeitas, o estender dessa imperfeição aos fundos de cobertura de risco e a outras instituições não reguladas pode moderar os aspectos negativos. Se as coisas ficarem demasiado complicadas para os reguladores, a função pode sempre ser direccionada para o sector privado, que contam com os próprios modelos de risco das agências de notação financeira e das empresas financeiras. Os ganhos provenientes da inovação financeira são demasiado substanciais para que haja uma intervenção com mão mais pesada.
Os cépticos financeiros discordam. Eles não estão tão convencidos que a recente inovação financeira tenha criado ganhos significativos (excepto para o próprio sector financeiro) e duvidam que a regulação prudencial possa alguma vez ser suficientemente eficaz. A verdadeira prudência exige que os reguladores beneficiem de um conjunto mais amplo de instrumentos de acção, tais como tectos quantitativos, taxas sobre transacções, restrições à securitização, proibições ou outras inibições directas às transacções financeiras – sendo todos eles um anátema para a maioria dos intervenientes dos mercados financeiros.
Para melhor perceber o fundamento lógico de uma abordagem à regulação financeira mais extensa, pense em três indústrias reguladas: medicamentos, tabaco e armas de fogo. Em cada uma delas, tentamos equilibrar os benefícios pessoais e a liberdade dos indivíduos para fazerem o que lhes agrada com os riscos gerados para a sociedade e para eles mesmos.
Uma estratégia possível consiste em identificar os comportamentos que causam problemas e contar com o autocontrolo de cada um. Essencialmente, esta é a abordagem defendida pelos entusiastas financeiros: estabelecer os parâmetros comportamentais e deixar que os intermediários financeiros operem livremente.
No entanto, as nossas regulamentações vão consideravelmente mais longe naquelas três áreas. Com efeito, restringimos o acesso à maioria dos medicamentos, cobramos pesados impostos sobre o tabaco e controlamos a circulação e a posse de armas. Existe um princípio prudencial simples em acção nestes casos: como a nossa capacidade para monitorizar e regular comportamentos é necessariamente imperfeita, precisamos de contar com um conjunto de intervenções mais amplas.
Na realidade, os entusiastas financeiros são como os defensores norte-americanos das armas, que argumentam que “as armas não matam pessoas; as pessoas é que matam pessoas”. A implicação é clara: punir apenas as pessoas que utilizam as armas para cometerem crimes, mas não penalizar as restantes, restringindo-lhes o acesso a armas. Mas como não podemos ter a certeza que a ameaça de punição impede todos os crimes, ou que todos os criminosos são apanhados, a nossa capacidade para levar os proprietários de armas a comportarem-se de forma responsável é limitada.
Consequentemente, a maioria das sociedades avançadas impõe controlos directos sobre a posse de armas. Da mesma forma, os cépticos financeiros estão convictos de que a nossa capacidade para evitar que se assumam demasiados riscos nos mercados financeiros é igualmente limitada.
Até que ponto se concorda com os entusiastas ou com os cépticos depende da perspectiva de cada um sobre os benefícios líquidos da inovação financeira. Voltando ao exemplo dos medicamentos, a questão é saber até que ponto é que se acredita que a inovação financeira é como a aspirina, que gera grandes benefícios a um baixo risco, ou como as metanfetaminas, que estimulam a euforia, seguindo-se um perigoso colapso.