Opinião
André Gonçalves Pereira : um grande legado para honrar
Escrevo estas linhas num momento de profunda tristeza para toda a família Cuatrecasas, Gonçalves Pereira, e que a mim me toca muito particularmente.
Comecei a minha carreira como estagiária do André Gonçalves Pereira. Estávamos na década de 80, ainda uns bons anos antes do início da era das sociedades de advogados. O escritório do André, fundado em 1928 pelo seu Pai, o Professor Armando Gonçalves Pereira, tinha ganho uma sólida projecção internacional e, depois da fase conturbada que se seguiu ao 25 de Abril, assistia-se a um fluxo crescente de investimento estrangeiro em Portugal, com o André a ser procurado por uma elevadíssima percentagem das multinacionais que cá pretendiam investir.
Desde o primeiro momento, foi para mim evidente que era um enorme privilégio ter o André como patrono e trabalhar sob a sua orientação, como foi igualmente evidente que, indissociável desse privilégio, tinha perante mim o desafio tremendo de conseguir corresponder a um nível de rigor e exigência fora do comum. O que não estivesse perfeito, no conteúdo ou na forma, estava mal - cedo aprendi que nem a menor falha de pontuação era tolerada!
Tinha também uma verdadeira obsessão com a pontualidade. Das primeiras coisas que fez questão de deixar claras, foi que não permitia um minuto de atraso. Quando um dia me convocou para reunir com ele às 15h, apareci-lhe no gabinete dois minutos antes. Olhou para o relógio, comentou que estava dois minutos adiantada e sublinhou que ser pontual era chegar exatamente à hora marcada - nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Quando terminámos, e para que não restassem dúvidas sobre a precisão da hora, agendou a reunião do dia seguinte para as 15h03m!
Com a exigência, vinham os ensinamentos. Numa época em que não se sabia o que era "soft skills", já o André me transmitia a importância dessa vertente e me ajudava nessa aprendizagem. E vinha também, naturalmente, a partilha dos princípios que defendia no exercício da profissão. O princípio basilar, que exemplarmente encarnou, foi o da independência do advogado: " a maior força de um advogado reside na sua independência, quer de forças políticas, quer de forças económicas, ou de quaisquer outras", não se cansava de repetir.
Ao longo de muitos anos, e já sendo sócia, continuei sempre a contar com o André como meu mentor e, desde cedo, passei a contar, também, com um Amigo. É a ele que devo, em larguíssima medida, o meu percurso e a minha realização profissional.
Foi um privilégio partilhar com o André mais de três décadas de história do nosso escritório e privar com ele ao longo das distintas fases do processo de construção da instituição que hoje somos. A sua inteligência superior e a sua invulgar cultura, proporcionavam conversas extraordinariamente ricas e estimulantes, que o seu acutilante sentido de humor muitas vezes tornava também divertidas.
Mas o André, todos o sabem, foi uma personalidade marcante muito para além da história da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira. O André foi, e será sempre, uma referência na história da advocacia portuguesa, enquanto advogado brilhante e inspirador, capaz de marcar gerações, um visionário percursor do que é hoje a advocacia em Portugal. E o André perdurará também como figura ímpar do mundo académico, político e cultural.
É um tempo que termina deixando-nos um sentimento de perda irreparável, mas com o conforto do grande legado que permanece e que nos compete honrar.
Irei recordá-lo sempre com uma profunda admiração, uma enorme gratidão e uma infinita saudade.