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A piolheira

Muito se tem falado por estes dias de regicídio. Nem sempre mantendo a devida distância das circunstâncias históricas e em alguns casos dando largas à maior das demagogias. Enfim. Não é contudo a morte do rei que para aqui interessa. Mas sim o desabafo qu

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Mas sim o desabafo que um dia terá supostamente proferido, pois há quem afirme que se trata de uma invenção da Carbonária, descrevendo Portugal como uma piolheira. Descrição que ficou a marcar o rei mas também o próprio país confirmando aliás outros relatos históricos de estrangeiros que por cá passaram. Ora este epíteto vem muito a propósito da campanha que tanta gente anda a mover contra a ASAE.

Portugal evoluiu bastante nas últimas décadas. Lembro-me de ter visitado Trás-os-Montes em finais da década de 60 e o sítio me ter parecido não medieval, mas claramente neolítico. As casas eram buracos escuros e frios, as pessoas rudes, vestidas com peles e palhas e as estradas inexistentes. Única memória excitante, à noite ouviam-se os lobos o que muito fascinou este então jovem urbano frequentador do café Vává e declarado adepto do modernismo.

Apesar da persistente miséria e das muitas ilhas de degradação o nosso país é agora bastante mais civilizado, com boas comunicações, estruturas básicas, melhor educação, mesmo a cívica apesar da demência rodoviária, e uma maioria de gente com um mínimo de cultura e capacidade económica. Graças aos chineses já é raro ver-se alguém com roupas esburacadas e muito sujas. E graças aos serviços de saúde, por estes dias tão vilipendiados, já não nos cruzamos com pedintes a arrastarem-se pelas ruas com feridas à mostra. Sobra a falta de dentes que continua a ser uma calamidade tipicamente lusitana muito vistosa nos ecrãs de televisão.

Mas, como se sabe, nem tudo está bem. O esforço de modernização é um exercício constante e nunca terminado. Sobretudo na evolução dos comportamentos, muito mais lenta do que o tempo de construção de uma rede de auto-estradas. E aí é evidente que Portugal continua a ter um grave problema no campo da higiene. Talvez por sermos um país de marinheiros e depois de tanto naufrágio, muitos portugueses continuam a ter um enorme horror à água. Apertar a mão a algumas pessoas é correr mais riscos do que viajar ao Burkina Faso sem tomar as prescritas vacinas.

É por isso que esta súbita indignação de tanto intelectual, político e cidadão contra a acção da ASAE , a qual mais não faz do que tentar introduzir alguns princípios de salubridade na sociedade portuguesa, só pode ser entendida como uma manifestação regressiva em defesa da velha piolheira. Confundindo a sobrevivência da produção artesanal com a defesa da nojeira. Como se não fosse possível fazer boas alheiras com as mãos lavadas. Ou será que aquelas unhas negras, sabe-se lá recheadas de que compósitos, são um ingrediente assim tão fundamental para o paladar lusitano?

Ainda recentemente um estudo sobre o que fica agarrado às notas que por aí passam de mão em mão, registou para além de muita cocaína elevados índices de matéria fecal. Ou seja, muita gente vai à casa de banho e não lava as mãos. Coisa aliás verificável por qualquer um de nós, sem necessidade de recursos muito científicos, bastando frequentar uma casa de banho pública e observar o comportamento geral. A propósito recordo que pelo menos em Nova Iorque, cidade americana que conheço melhor, a ASAE lá do sítio, obriga à afixação na porta dos lavabos de todos os restaurantes de um dístico que diz: “os empregados são obrigados a lavar as mãos depois de usar a casa de banho”. Fica a sugestão para o António Nunes.

Esta sanha contra a ASAE tem por outro lado gerado uma união nacional assaz caricata. Ver Louçã e Paulo Portas abraçados na defesa das bactérias é digno de registo. Ou certos intelectuais a servirem de advogados de defesa dos mixordeiros e de uma espécie de condição sebenta que seria a essência da nossa identidade. E depois há os que criticam que nunca se faz nada, mas assim que alguém finalmente faz alguma coisa logo clamam contra os exageros. Sugerindo que a mesma lei que se aplica ao hipermercado devia isentar a senhora que faz em casa rissóis para o café da esquina e que até é muito asseadinha. Como se a lei não devesse ser universal, precisamente para impedir a arbitrariedade sempre profundamente injusta. E os cínicos que dizem que o excesso de higiene provoca alergias. O que sendo verdade nada tem a ver com a exigência de regras que protejam os consumidores. Ou os que agitam o fantasma da PIDE, numa banalização e agressividade que só podem relevar da perturbação mental. Mais triviais temos igualmente os perenes defensores do antigamente é que era bom. E os que se dizem de esquerda mas nunca perdem uma oportunidade para defender tudo o que há de mais retrógrado. E hoje é na esquerda que encontramos as pessoas mais conservadoras. Na defesa do tradicional como se este não fosse invariavelmente sinónimo de arcaísmo e muitas das vezes manifestação de algo que uma sociedade avançada não deve mais tolerar. Na defesa de uma identidade feita de bárbaros costumes e comportamentos repugnantes. Como se obrigar alguém a lavar as mãos fosse um acto fascista.

Enfim, nunca deixa de espantar como em Portugal são tantos os que se opõem a qualquer processo mínimo de civilização e só imaginam a evolução do país como um eterno retorno à piolheira.

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